Tuesday, September 30, 2008

O Corpo Humano



Até ao momento em que as neurociências vieram acrescentar métodos e novas capacidades de visualização do corpo humano, o corpo humano era imaginado e apresentado aos estudiosos das formas mais variadas e interessantes, quando consideradas do ponto de vista simbólico, místico e psicológico.
Desde os desenhos das visões da monja Hildegarda de Bingen, na Alemanha do século XII, até aos desenhos do teósofo J.G. Gichtel, que teve ainda maior influência no século XVII (já a tipografia permitia reproduções que circulavam melhor do que os antigos manuscritos iluminados), o processo de visualização (entendimento) do corpo humano não deixou nunca de interessar o mundo.
Gichtel publica em 1696 a sua Theosophia Practica, que será reeditada em 1736  e modernamente retomada pela primeira vez em edição francesa, em 1973.
Nesta roda do mundo, da primeira gravura que ornamenta o livro, explica o autor a sua doutrina: com a roda do mundo se exprime a imagem de Deus no homem, de acordo com os três princípios, a saber do corpo, espírito e alma, todos emanando do centro divino de Deus que se manifestou no mundo e no homem, por sua vez colocado, também ele, no coração do universo criado.
A linguagem é própria de um misticismo confuso, eivado de um pouco de tudo: cristianismo, cabalismo, alquimia da transmutação da alma.
Não nos interessa aqui a linguagem explanatória, mas apenas a imagem que pretende que visualisemos sem preconceitos:
" Imagina isto de um modo vivo na tua alma; compreenderás mais facilmente as figuras, pois a compreensão é interior". 
Faz-se apelo à intuição e sensibilidade, à capacidade imediata de entender por outra via que não a da razão. Assim, noutros tempos como nos de agora, se transmitia cultura, pedindo uma aceitação imediata, sem que a Razão interviesse. 

Os surrealistas não farão melhor, na sua teoria e nas suas práticas, embora com os tempos se mudasse de forma radical o imaginário do corpo. Basta chegar a Picasso e aos cubistas em geral.
Gichtel, no século XVII quer apresentar, ou representar a imagem do Homem Perfeito, renascido em Deus, como nos explica.
Os modernos e modernistas não têm tal pretenção: querem uma realidade humana objectivada, ainda que de modo intuitivo, subjectivo, na sua directa e simples humanidade, sem mancha de misticismo. O mundo laicizou-se e com essa laicização do imaginário já não se pretende difundir a imagem de um corpo místico possível, caso o habitante desse corpo procurasse a redenção (através do entendimento da essencia da divindade e do homem como parte dela).

Mas agora como outrora o artista sente que lhe será difícil explicar com objectividade o impulso que o levou a esta ou aquela criação. Gichtel afirma, com modéstia:
 " o leitor perceberá que tenho de me servir  de similitudes naturais" ou seja, que só por metáforas se poderá explicar o que lhe nasce do fundo da alma.
A metáfora será um dos segredos do acto criador: é a metáfora que o explica e nunca um qualquer raciocínio, por mais elaborado que pareça.
Na realidade o mundo do simbólico na arte ( na cultura) só por aproximação e nunca directamente, pode ser entendido.
Esta é uma das discussões a fazer, ainda hoje em dia.

II
Erwin Panofsky (Meaning in the Visual Arts,Penguin Books) dá-nos um quadro sinóptico extremamente útil para aquilo que se pretende: identificar e interpretar as matérias artísticas ou culturais de que nos ocupamos. Seja qual for a esfera em que nos movamos, tudo dependerá "do nosso equipamento subjectivo, que terá por isso de ser acresentado e corrigido pelo conhecimento dos processos históricos, cuja soma total se pode chamar de tradição" (p.67). 
Assim, no quadro, as divisões caracterizam:
1. as matérias primárias de interpretação, focando em primeiro lugar os motivos, factuais ou recreados, sendo essa a primeira base do reconhecimento para interpretação.
2. as matérias secundárias ou convencionais, constituindo o mundo das imagens, estórias e alegorias.
3. o sentido intrínseco , ou conteúdo, constituindo o mundo dos valores simbólicos.

Quanto ao "equipamento" ( os conhecimentos necessários) para a interpretação, também o autor os ordena, do seguinte modo:
1. experiência prática, ou seja, familiaridade com os objectos e os acontecimentos
2. conhecimento das fontes literárias e artísticas (  os temas e conceitos específicos).
3. intuição sintética (familiaridade com as tendências essenciais do espírito humano, condicionados pela psicologia pessoal e weltanschauung).

Deste modo, com o conhecimento acumulado e pelo convívio habitual com as matérias que se desejem estudar se chegará ao entendimento do que Panofsky chama de sintomas culturais ou símbolos em geral, percepção das tendencias essenciais do espírito humano através da manifestação de determinados temas e conceitos.

Este método de trabalho, que pode parecer disperso ou fragmentado, permite na realidade um entendimento globalizador dos processos da criação literária, artística, cultural na sociedade humana à medida que vai, histórica e socialmente, evoluindo.
 








Saturday, September 20, 2008

Ceci n'est pas une pipe


O título provocador do quadro com o cachimbo, e a legenda com a afirmação de que aquilo não é um cachimbo, colocou a base mesma da discussão da representação na arte.
Uma imagem não é uma realidade, é uma representação da realidade com tudo o que isso encerra de idealização (ainda que realista) deformação, reinvenção, ampliação metafórica ou simbólica de sentido.
Ainda que aparentemente fiel ao objecto real, neste caso o cachimbo, nada há de verdadeiramente comum entre eles: o cachimbo da imagem não pode ser fumado, é dada a ver uma imagem, não a sua realidade. 
Real, só o objecto em si mesmo.
Assim, de forma simples, mas carregada de ironia subtil, Magritte, de novo ele, coloca a questão da definição do conceito, no coração da arte. E introduz igualmente o que os teóricos definem como desconstrução: ao desconstruir a ilusão do real, remetendo a imagem para o que ela é, imagem, representação,ampliam o sentido do que na cultura visual deve ser discutido: 
o sentido complexo tem de ser desenvolvido através de vários filtros de interpretação que permitam uma mais sofisticada reflexão e análise; sem contudo perder a "marca" do artista, pois a criação é sempre um statement , uma afirmação pessoal, ainda que em contexto cultural ampliado, e com estilo próprio, pessoal.
É o estilo que define o artista.



Friday, September 19, 2008

Da Publicidade à Arte e vice-versa



René Magritte, o pintor que não queria ser apelidado de surrealista, nem de metafísico, nem de fosse o que fosse que o identificasse com algo que não ele próprio, tem uma obra que desafia o nosso imaginário e o seu cunho de realismo onírico (aparentado às imagens dos sonhos) pede interpretação.
É vulgar dizer-se que há marcas da sua obra na publicidade-arte, e na pop-arte que surgiu anos mais tarde, e em que o realismo, o fantástico e o imaginário surrealista se fazem ver e sentir.
Pode traçar-se um caminho da publicidade à arte e da arte aos conceitos, na obra de Magritte, como se faz num dos capítulos das ed. Taschen da sua obra.
Mas é preciso não esquecer que este artista é sobretudo pintor, faz publicidade para ganhar a vida, e pelo facto de ser um artista de ambiguidade complexa leva à publicidade, para além dos efeitos indispensáveis  da comunicação e marketing, um efeito de sublimação que só a arte permite. 
O que a publicidade obtém, com Magritte e não só, é um ganho suplementar de influência sub-liminal, que os surrealistas conheciam bem (tendo assimilado Freud ) tanto no domínio da linguagem verbal como no domínio da imagem : as imagens transportam ideias, as imagens não são neutras, carregam o seu próprio significado, aparente ou oculto. 
No caso de Magritte um duplo jogo de aparência e ocultação que faz do seu trabalho um aliciante exercício seduzindo quem o contempla. 

Andy Warhol e Roy Lichenstein, entre outros criadores  da escola de Nova Yorque, ampliam a discussão, propondo um novo olhar do real objectivo  com as técnicas que em princípio se aplicavam na fotografia e na publicidade: alargou-se o conceito de arte, com eles, para sempre, se é que para sempre é um termo adequado em arte.

Magritte negou ter influenciado ou desejado ser seguido por estes novos expoentes, que desdenhava por serem casos de fashion, passageira moda bem longe do que ele entendia ser a criação poética, artística : "sentimento do real no que contém de permanente".
Ora nada há de menos permanente do que a moda, ou os seus efeitos, e a publicidade, como conceito permite esta discussão: marca o momento, a atracção do momento, o sucesso do momento, mas só ultrapassando o momento e ganhando outro estatuto se poderá chamar de arte.
Já para não falar do objectivo que em cada domínio o artista se propõe: na arte em primeiro lugar a satisfação íntima, pessoal; na publicidade o aumento de vendas.

Havendo, como em tudo, algumas excepções: Salvador Dali comentava que o anagrama do seu nome era avida dollars...

Thursday, September 18, 2008

Nicholas Mirzoeff


Com o título de An Introduction to Visual Culture, ed Routledge, 1999 (com reedições sucessivas em 2000, 2001, 2003, 2004 e 2006) procura este autor, dos mais citados  nas bibliografias  dos estudos de cultura visual, dar aos estudiosos um panorama completo, na medida do possível, das áreas que o conceito abrange.
De facto é multidisciplinar a área da cultura visual, atravessa variados domínios, artísticos, científicos e tecnológicos (estes cada vez mais, com as novas tecnologias de produção e divulgação no cinema, na televisão, na net).
Se para nós é importante parar um pouco que seja no conceito de cultura- pois de cultura, ainda que visual se trata, para todos será importante entender o que é a dimensão visual que a cultura atinge e a influência que ao longo dos tempo a sua produção atinge.
Numa sociedade mais jovem, como a americana em relação a outras, talvez o peso da história de arte se revele menor, ou menos influente,  nos laços de transversalidade que se possam estabelecer, ou adivinhar.
Mirzoeff começa pois por discutir o que é a cultura visual, definindo o que é 
 visualizar
 o poder visual e o prazer visual
a visualidade (  capacidade que o objecto em causa tem de se dar a ver , e não é o mesmo do que ser ou não visto)
e finalmente
cultura
e vida quotidiana

Estas são considerações introdutórias, mas podemos discutir se não teria sido desde logo melhor avançar pelo que se entende por cultura, arte e vida quotidiana, na medida em que hoje todos vivemos em ambiente de cultura ou de aculturação visual: desde os jornais e revistas que se abrem, aos anúncios que ocupam transportes e espaços públicos, televisões, etc. 
Mas é certo que este tipo de cultura visual pouco pode ter a ver com arte propriamente dita: outra distinção importante a fazer.
O que é arte, o que é cultura, no domínio complexo da cultura visual.
A reflexão conduz ao conceito de imagem.
Há pensamentos-imagem, como há na literatura imagens-pensamento: estão na base da produção poética, mais realista e descritiva, ou mais surrealista ou abstracta, tal e qual como se pode dizer das obras de arte da pintura ou da escultura.

Voltando ao nosso autor, ele na Parte Um, cap.1, abre com a VISUALIDADE, e a Definição da Imagem: linha,côr, visão; preocupa-se com temas que são caros ao desenho e à pintura: perspectivas, disciplina, côr ( eu diria ordem, ou ordenação como referiu Escher) luz, etc.
Já no cap. 2 transita para a  A idade da fotografia (1839-1982): trazendo à nossa reflexão se tal trouxe a morte da pintura,
se fez nascer aquilo que chama de imagem democrática,
a que se segue, no fim,  a morte da fotografia.

Os temas ligados à fotografia, seja como documento de vida, social, política, de guerra (veja-se a obra de Robert Capa, que morre na Indochina) seja como forma de arte (vejam-se as fotografias de Jorge Molder, a série de autoretratos) passam em regra para segundo plano porque entra em cena  arte cinematográfica que permite, com mais dinamismo, fixar o quotidiano, os grandes temas, de paz ou de guerra, e em absoluto desenvolver o imaginário de um mundo de ficção que se torna muito apetecível.
Entra duas guerras mundiais a oferta do prazer, mais do que do poder ou da informação da imagem, é a grande tentação que vai revolucionar também os outros domínios: teatro, música, dança, nada voltará a ser o que era. 

No cap. 3 o autor ocupa-se de temas como o da virtualidade que se torna global, uma virtualidade que pode substituir-se (com risco) à vida real e quotidiana, a vida na net que já hoje preocupa sociólogos e pedagogos, e corpos virtuais, como a criação da second life já tornou manifesta, a seguir aos joso de computador em que víamos uma Lara Croft desenhada a partir de uma actriz de cinema de grande beleza e sucesso.

Na Parte Dois da obra abre-se uma discussão de carácter antropológico, focando a importância dos rituais nas tribus primitivas, o valor e e peso da memória cultural, tendo mostrado alguma experiência de colonizadores que ao apagar-se a memória cultural se neutraliza uma civilização. 
Esta segunda parte é relativa à CULTURA, depois de na primeira se ter focado muito a Visualidade.
Podemos alargar a discussão ao entendimento das culturas primitivas ( na idade da pedra os registos de animais convocando o sucesso na caça, na pesca, ou as cavernas onde a deusa da terra tinha o seu culto e recebia sacrifícios e oferendas) etc; 

Os capítulos finais introduzem vários outros temas, como  o tema do sexo na cultura visual: impossível escapar  à sexualização da vida, da arte, da cultura, do quotidiano real nos seus múltiplos aspectos; o tema dos géneros, das raças, e de um imaginário fantástico que se ocupa do mundo extra-terrestre, dos impérios (do bem e do al), dos perigos presentes e passados, da nva televisão que tudo vê tudo mostra: na Parte Três, sobre o
  GLOBAL/LOCAL
o que o autor oferece à discussão é a morte da Princesa Diana.
Com a transmissão de tudo o que aconteceu, desde o acidente até ao enterro e à investigação policial, entende o autor que se inaugurou de facto a Cultura Visual Global.
Mas nós tivemos também no nosso país um case-study inultrapassável: o caso Maddie, no Algarve, que atingiu dimensão planetária.

Wednesday, September 17, 2008

A força da imagem

Diz-se, e há que concordar, que uma imagem vale mais do que mil palavras.
O artista conhece bem o impulso que o move a produzi-las. Mas muitos outros se apoderam hoje em dia dessa força que age directamente sobre o sub e o inconsciente da pessoa, imprimindo no cérebro de forma indelével, ou quase, o desenho e a energia que a constitui.
No princípio da televisão e da publicidade falava-se em proibir imagens ditas subliminais: precisamente as que ficavam impressas, influenciando sem que a pessoa o soubesse, os seus desejos, apetites, comportamentos, individuais e sociais. 
Com o que se conhece do avanço das ciências neuro-biológicas nos nossos dias voltou a abrir-se esta questão, do poder e da influência da imagem, do seu bom ou mau uso que, seja qual for o caso, nos coloca a questão da ética da cultura visual e sua produção e promoção descuidada. 
Não se tratará de fazer censura, mas sim de abrir um debate sério: o que hoje toca apenas a alguns, na sociedade, pode muito rapidamente vir a tocar a todos em rápido descontrole. 
Há sempre uma dimensão social na arte: ela é produto de um tempo, de uma pessoa nesse tempo, que teve uma educação e não outra, adquiriu certos conhecimentos e não outros, certas sensibilidades e não outras  e por aí adiante.
A menos que viva em autoexclusão -e mesmo entre os monges budistas tal é difícil-o artista vive, produz, divulga em ambiente social, que pode aceitar ou rejeitar a sua obra,mas tanto a aceitação como a rejeição se baseiam em factores culturais, logo sociais, de reacção. 
Tudo é visual na cultura produzida hoje em dia. E tudo é social, na dimensão que adquire: desde o anúncio mais banal, à telenovela ou ao filme de sucesso como aos grandes concertos mediáticos como o de Madonna, recentemente.
A influência alarga-se a todos os domínios do consumo: hábitos e comportamentos (droga, bebida ) vestuário de marca, de preferência até criado pelos artistas que o promovem. 
Do grande sistema de estrelato (Starsystem) promovido nos EUA nas décadas do grande cinema dos anos 40-50-60  se passou rapidamente para a era dos modelos, dos músicos e cantores (estamos a evocar os Beattles, os Rollingstones, e até os Xutos e Pontapés... ) e agora dos futebolistas. Figo é um bom exemplo português.
Também, ou sobretudo os políticos, utilizam com proveito o poder da imagem: comícios, intervenções frequentes nos media, cultivo de uma aparência que deseja ter impacto: pela elegância, ou pela descontracção (abolição da gravata, por ex. nos deputados de esquerda).
Nada foge ao poder da imagem: assistimos em directo ao ataque das Torres de Nova Yorque, assistimos em directo ao grande arranque da guerra do Iraque, à queda de Saddam e até ao seu enforcamento. 
Em directo se assistiu à agonia do Papa João Paulo II.
São grandes os problemas de ética que tanta informação mediatizada levanta às consciências modernas.
É útil ver a deshumanização do mundo? Serve que propósitos, serve a quem?
Mas será melhor ocultar?
Pela imagem se constrói, pela imagem se destrói (ver as caricaturas que os comediantes fazem dos políticos).
Está aberta a discussão.

Ilustração e Cultura: Lima de Freitas


Uma obra como a de Camões não poderia deixar de inspirar os nossos grandes pintores.
Lima de Freitas foi um dos que se entregou à obra monumental de ilustrar alguns dos mais belos momentos desse clássico.
No soneto CXIII da edição da lírica completa desabafa o poeta contra o infortúnio da sua vida que só lhe consentiu desgosto e desfavor, como se ele somente à morte tivesse algum direito.
Lima de Freitas trata o tema com uma força e intensidade que nada deixam a desejar ao que foram as exclamações do poeta: sentado em meditação no interior de uma enorme caveira, tem apenas a seu lado a esfinge, o animal mítico que guarda os segredos da existência, não os revelando mas antes enchendo de temor a quem a contemple. 
Conhecemos de Durer, a caveira evocadora da morte que a todos espera, no retrato de S.Jerónimo, para não falar da célebre tragédia de Shakespeare, Hamlet onde também ele reflecte sobre o dramático destino do homem, colhido entre a existência, a vida, que pode não merecer, e o fim que a todos aniquila.
Contemporâneo da grandeza de Durer, Camões na sua lírica exprime bem o mal da alma, a dôr do sofrimento de uma existência rica de experiência mas excessiva de abandono e perda, a começar desde logo pela corte e pelo rei que o ignorarão perdido nas ruas de Lisboa, entregue apenas aos cuidados do seu escravo Jau.
Eis o soneto que Lima de Freitas ilustrou:

Que poderei do mundo já querer,
Pois no momento em que pus tamanho amor,
Não vi senão desgosto e desfavor,
E morte enfim, que mais não pode ser!

Pois me não farta a vida de viver,
Pois já sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que que mágoa dê maior,
Eu a verei ,que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou
De quanto mal me vinha; já perdi
O que a perder só ela me ensinou.

Na vida desamor somente vi,
Na morte a grande dor que me ficou.
Parece que para isto só nasci!


Metido numa caveira que ainda não é sepulcro mas é noite da alma, face à temível esfinge: cabeça e peito de mulher, asas de ave de rapina, corpo de dragão, patas e garras de leão, quão pequeno fica o homem, que diminuído o seu poder, que assustadora a sua natureza, a sua sonhada grandeza completamente anulada. Mestre Lima de Freitas buscou nas imagens pensamento de que falava Escher o enquadramento ideal para a tortura de Camões.



Tuesday, September 16, 2008

de M.C. Escher a Georg Scheele?





Abrindo a discussão: No capítulo IV da edição Taschen, para quem nunca tenha podido admirar ao vivo os desenhos e gravuras de Escher, temos a reprodução de círculos e espirais no espaço formando nós, bandas de Moebius (que ilustram este post ) formas concêntricas, espirais, espirais esféricas, laços de união (sendo que estes remetem para algo de muito interessante e que teríamos de estudar à luz do antigo mito do andrógino, do Banquete de Platão).
 Mas por agora o que desejamos é ver até que ponto, numa proximidade apenas de hipótese de trabalho, o exercício de Scheele nas suas esculturas pode ser aproximado do exercício igualmente geométrico de Escher nas suas gravuras. 
Num como noutro caso se desejou trabalhar no espaço aberto, infinito, embora a "materialidade" da obra obrigue, como é óbvio, a que a criação ocorra em espaço limitado. Mas fica o impulso, o desejo, a suspensão.
Apesar da gravura intitulada Ordem e Caos (colocada em primeiro lugar no posta contemplação da obra de Escher impõe-nos ao espírito a ideia de Ordem, a ideia antiga da geometria que  estrutura e ordena (tem de ser este o termo) o universo criado. Se o múltiplo disperso nas margens da gravura evoca a dispersão inicial, logo a estrela inscrita na esfera aprofunda e impõe essa ordem que subjaz à necessidade do acto de criação. 
O múltiplo é o lixo, o que se perde nas margens, o Uno, que estrutura, será então a imagem que transporta consigo o tal sentido maior, que dá substância e confere existência real à forma que nele se procurou redescobrir. Porque tudo o que existe, de algum modo existia já, ou não seria possível que passasse de potência a acto (afirmação que teríamos de ir meditar em  Leibniz, matemático e filósofo do século XVII que talvez Escher tenha lido...)
Se o lixo da gravura remete para tempos modernos: lata de conservas, casca de ovo, ainda que este possa ser memória do ovo primordial já fracturado,vidros partidos, cachimbo, etc, - já não é lixo o sólido geométrico que figura no centro.
Tem antepassado digno e igualmente  complexo de significação: refiro-me a Durer e à sua Melancolia .

Retomando a ideia de que partimos, no post anterior, dedicado a Scheele, sobre novas formas para novos sentidos, gostaria que se reflectisse sobre o que Escher escreve àcerca da sua obra de gravador:

"Dá a maior satisfação adquirir conhecimento artesanal, capacidade de conhecer profundamente o material que está à disposição e aprender a usar com mestria os utensílios de que se dispõe em priemiro lugar: as próprias mãos.Mas depois veio o momento em que os meus olhos puderam ver claro. Percebi que o domínio da técnica não era mais a minha finalidade, porque fui tomado por um outro anseio, cuja existência até então me era desconhecida. Vinham-me ideias que nada tinham a ver com a arte da gravura, fantasias que me cativavam de tal maneira que desejava absolutamente transmiti-las a outros. Isto não podia acontecer com palavras,pois não eram pensamentos literários, mas sim imagens de pensamento que só poderiam tornar-se compreensíveis aos outros quando lhes pudessem ser mostradas como imagem visual.Hoje escolho, entre as técnicas que adquiri, aquela que, mais do que qualquer outra, oferece uma melhor representação de um pensamento determinado que me absorve....Olhando para os enigmas que nos rodeiam e ponderando e analisando as minhas observações entro em contacto com o domínio da matemática. Embora não tenha qualquer formação e conhecimento das ciências exactas, sinto-me frequentemente mais ligado aos matemáticos do que aos meus colegas de profissão".

Há nestas declarações alguns pontos de grande importância a ter em conta:
1. bom e completo domínio dos materiais e técnicas de trabalho
2. realização de que não é a técnica, em absoluto e só por si que satisfaz o artista
3. existência de imagens-pensamento obrigando o artista a um acto de criação que permita a partilha de tais imagens com outros 
4. neste caso preciso de Escher, que pode não se verificar com outro tipo de artistas, a capacidade de se maravilhar com o mundo que o rodeia e alimenta o seu imaginário, a sua fantasia, descobrindo que a sua arte tem afinidades com outros saberes, como a matemática,  arte da pura abstracção por excelência 

Podemos concluir lembrando que a cultura visual parte de muitas formas de conhecimento, produção artística e diversificados modos de divulgação.
A Cultura Visual vive da Comunicação, hoje globalizada.
Houve um tempo em que tudo estava nas cortes, nos conventos, mais tarde nos museus, hoje tudo se abriu, no mundo da arte, da ciência e da cultura.

A Forma e a busca do Sentido



A exposição de Georg Scheele que vai ter lugar na galeria São Mamede a partir de 25 de Setembro tem por título New Forms for New Sence: julgo que haverá gralha neste termo sence : devia ser sense (sentido) ou então science (ciência) ou então, ao gosto e humor post-moderno, trata-se de uma fusão de sense e science deixando o visitante-leitor com essa dúvida, que poderá sempre esclarecer falando com o artista.
Seja como fôr, a ideia de forma nova para novo sentido ou, sendo ciência, para novo conhecimento ( e todo o conhecimento tem sentido ou não é conhecimento)serve bem este propósito que me leva a abrir um novo blog, dedicado aos estudantes de Cultura Visual.
Remonta à década de 80-90 a discussão mais sistemática da Cultura Visual entendida como "novo" objecto de apreciação, de um ponto de vista antropológico, sociológico, político, e não meramente artístico ao modo da disciplina de História de Arte como era dada nos antigos cursos das décadas anteriores.
O conceito de cultura visual vive do conceito primeiro de cultura: experiência artística ou saber acumulado por um indivíduo, um grupo, um povo, uma época civilizacional.
Assim falamos, por ex. de civilização pagã, civilização cristã, islâmica, outras ; e de um segundo conceito: o de imagem, ligado a essa cultura de que nos ocupamos, seja antiga,moderna ou post-moderna, a dos nossos dias.
A imagem dada a ver cumpre a função importante de instruir, marcar, instrumentalizar (quando é o caso) formatando uma determinada cultura e memória.
Chegamos a outro ponto importante: não há cultura sem memória, e a cultura visual, desde os tempo mais distantes, o que fez foi preservar a memória da existência de uma determinada cultura.
O que sabemos hoje da antiga civilização egípcia, dos seus hábitos e práticas, religiosas e culturais, está guardado nos hieroglifos que a arqueologia, ao longo dos anos, tem posto a descoberto. Podemos entendê-los como uma espécie de primeira banda desenhada onde tudo o que acontecia ou era imaginado no reino era contado ao pormenor: batalhas, vitórias, festejos, castigos, sem excluir a travessia das almas depois da morte, com um julgamento final em que o deus do além pesava o bom e o mau de cada uma para decidir do seu destino.

Muito caminho se percorreu desde estas primeiras "bandas desenhadas", de carácter realista, função pedagógica e moral até às mais modernas, de puro entretenimento, consumo rápido e pretensamente inconsequente.
Ideia que deve ser discutida pois, se se tratar de arte, nada é inconsequente.

Voltando agora à exposição que anunciei:
Georg Scheele vive e trabalha em Portugal desde os anos 90.
Encontrou no nosso país as jazidas ideais do mármore com que gosta de trabalhar. Vem-me à ideia o nosso João Cutileiro, que também fez do mármore uma das suas melhores formas de narrativa (mais suportada no real, enquanto Scheele trabalha formas abstractas, e nelas propõe que se busque o sentido).
As esculturas de Cutileiro têm a marca de um artista que trabalha com alegria sensual o corpo da mulher, as fontes onde se debruçam meninas, as árvores que crescem e florescem no seu paraíso individual,os grandes guerreiros que gostaríamos de ter à porta dos nossos jardins, a proteger-nos. A sua herança é clássica, sem por isso deixar de ser moderna, no desafio arrojado que lança ao público. O desafio é uma das características que as práticas do Modernismo trouxeram ao mundo das artes, (basta recordar os exemplos de pintores, poetas, compositores, do Expressionismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, etc.).
A escultura de Georg Scheele não convoca o realismo da matéria do corpo ou da natureza em redor. Nascido em sessenta, a sua formação ( a sua cultura) é outra, de matriz conceptual, abstracta, diria quase matemática.
Também desde um Miguel Ângelo, um Rodin um Moore (ou um Cutileiro entre nós) se caminhou bastante até Scheele.
Se na criação dita realista, naturalista, o sentido está contido e é explícito na forma que adquiriu, na moderna ou post-moderna criação o sentido está para além da forma que enfrenta, confronta, desafia, deixando logo bem claro que o sentido nunca será um só.
Fragmentação, multiplicidade, abertura de formas e sentidos são as características mais notórias da era moderna e post-moderna.

II

Será discutível, mas entendo que não há inovação sem tradição, como não há cultura sem memória. A marca da tradição, artística, cultural, neste caso de que nos ocupamos, pode ser mais forte ou mais fraca, mais consciente ou inconsciente, intencional (quando é uma "citação" ) ou involuntária (quando se tratou de imagem submersa no inconsciente e que alguma coisa fez trazer à superfície) mas não deixará de se manifestar de uma forma ou de outra.
Na lição moderna e post-moderna cabe ao observador estabelecer os nexos que possam existir.
Só por isso não me coibo de trazer à discussão, nestas obras de Scheele de que uma amostragem nos é dada no seu site do google, a obra de um grande criador, que mexeu com o imaginário científico e artístico de muitas gerações: M.C.Escher.
O seus moebius 1 e 2, os seus laços, os seus pássaros são construções que partem de uma objectividade científica que nos parece impossível e no entanto ali está, a pôr-nos à prova, a desafiar o nosso gosto, o nosso sentido de equilíbrio, a nossa imaginação. Escher oferece-nos o impossível, tornando-o mais do que real.
Com ele se caminhou para um fantástico-real de que passará a haver igualmente exemplos na arte da literatura, ( Jorge Luis Borges, Italo Calvino, entre outros) e sobretudo do cinema, arte-rainha da imagem.