Saturday, January 15, 2011

Boccioni






A propósito deste futurista vale a pena comparar estes seus quadros: um em que pretende exprimir o dinamismo de um ciclista, Le Dynamisme d'un Cicliste, e por essa via, do movimento veloz, afirmar-se como inovador; outro, intitulado Le Deuil, O Luto, anterior ( é de 1910, mas já o futurismo com Marinetti e os seus Manifestos se auto-proclamara como a grande revolução do século) e por fim o retrato de 1910-1911, intitulado Ídolo Moderno com as marcas de um fauvismo colorido ainda muito presente, embora já prenunciando o que seria a violência maior do expressionismo; as cores são contrastantes, intensas, e a fixidez do olhar da mulher pode prenunciar um distúrbio latente, o da loucura da época; assim como no quadro do Luto foi possível, na sua distorção, exprimir melhor o desgosto sofrido.
Não são quadros realistas , são expressionistas porque é a expressão que conta, é a emoção, ainda que disforme, que se transmite ao nosso olhar.
Há ali, no quadro do Luto, um rodopio circular, um tumulto que pode ser de vertigem de alma e que nesse exagero cumpre os novos ditames de uma arte que se quer diferente: forte, como dizia Boccioni no texto que citei abaixo, de crítica a Picasso.
Mas vale a pena ainda estudar um outro quadro, compreender o que ele pretende e de que modo evolui, estilizando, a sua visão do mundo, do que chamará a obra inovadora, pela sua "força", pela sua "energia" : trata-se, também de 1911, de As Forças de uma Rua.
Tudo ali se geometriza, se verticaliza de um modo ascendente que conduz o olhar a uma luz que supõe uma construção erguendo-se à luz da electricidade ou de alguma lua misteriosa tornando a rua um palco de formas sobrepostas (de modo quase atabalhoado na sua precipitação): o efeito é de surpresa e confusão, como acontece numa rua de excessivo movimento por onde se circule à noite.Só pedras, só escadas, só maquinaria: o progresso de que a humanidade pouco a pouco se ausenta.

O Olhar dos Modernistas





A primeira década do século XX traz grandes modificações à Arte e à Cultura Visual:
com o Futurismo, com o Cubismo, na cidade de Paris, à época considerada a capital de toda a inovação, podemos descobrir como a representação do corpo foi evoluindo.
Neste óleo de Picasso, iniciado em 1908 e completado em 1909 (já com os Futuristas em plena actividade, com os Manifestos de Marinetti, com as produções de Braque e outros como Marcel Duchamp apresentando o novo imaginário da Velocidade, do corpo em movimento) podemos encontrar algo da antiga Vénus, de formas generosas, um corpo que se oferece ao olhar na semi-escuridão de uma caverna, ou de uma floresta, com um forte pelo aos sentidos.O quadro tem dois títulos: La Dryade, ou a Dríade (ninfa da natureza, forma do Feminino elementar) e ainda Nu dans la Forêt, Nu na Floresta; este título terá mais a ver com a evocação das Vénus primordiais, o seu culto, a sua energia mais fecunda e mais óbvia.
Também neste caso se pode aludir, como têm feito alguns historiadores de Arte ao elemento do exagero - mas agora bem consciente e bem intencional- na "deformação" por assim dizer, do corpo e dos membros expostos.Seios, ventre, coxa têm uma iluminação especial que atrai o olhar de imediato, obscurecendo outros elementos, como o rosto, meio fundido com a rocha ou chão ou tronco de árvore esbatidos como suporte no fundo da tela. Aliás a posição do corpo também se revela ambígua: meio erguido, ou encostado ou mesmo semi-deitado- mas entregue de forma sensual, efeito obtido pela luz incidente.
Esta é uma fase em que Picasso e Braque se interessavam pela representação da forma humana já a caminho dum novo ismo: o Cubismo, de que o espanhol será o máximo e mais longevo representante.
O título do quadro explica mais cabalmente o seu significado simbólico e a razão pela qual podemos aqui evocar a Vénus primitiva.
As dríades são entes mitológicos da antiga Grécia, habitando as florestas, evocando os antigos mistérios e rituais de iniciação pagã. As sombras que envolvem a figura acentuam a ambiguidade do simbolismo (sexual) desta representação.
Referi-me ao Cubismo.
Mas vejamos também, para comparação, um outro óleo, de 1910, representando uma mulher sentada: Femme Assise dans un Fauteuil.
Nesta altura já tudo tinha mudado no conceito de representação, cada vez mais afastado da ideia de "imitação" herdada da Poética de Aristóteles em que se propunha como exercício da arte a imitação do real.
A ideia de real já era outra, na arte do século XX, o mesmo se podendo dizer do conceito de imitação. Não se imitava, na arte, antes se exprimia, se representava a imagem de um mundo exterior ou interior (como na produção onírica dos Surrealistas) numa desarticulação que só o rigor formal, de pura geometria, articulava.
Umberto Boccioni, um dos mais importantes futuristas, dirá num seu panfleto de 1914, que
" um quadro de Picasso não tem lei, não tem lirismo, não tem vontade" (entenda-se por vontade "energia").

Este era o tempo dos muitos manifestos, da negação do passado, que cabia aos museus, como dirá Almada Negreiros, o tempo da celebração da força, da energia, da luz eléctrica nas fábricas onde o progresso crescia, onde tudo devia ser, na vida como na arte, liberdade em movimento, velocidade permanente.
Num texto que intitulou O Círculo não se fecha, de 1914, afirma Boccioni que a ciência transformou por completo o modo como os artistas podem (devem) exprimir as suas emoções. Partira-se outrora, na arte, "da matéria simples e informe para a ultrapassar". E agora a arte cumpriria esse destino.
De facto, já Freud tinha publicado A Interpretação dos Sonhos, Einstein apresentado a Teoria da Relatividade, Joyce publicado Ulysses.
Dinamismo é a palavra-chave (outrora fora animismo, realismo, simbolismo).Um dos quadros mais célebres de Boccioni, de 1913, tem por título Dynamisme d'un Cicliste, Dinamismo de um Ciclista.
Tudo tinha mudado, e a Primeira Guerra Mundial estava às portas da Europa.

Friday, January 14, 2011

As duas Vénus e Magritte




Da Vénus de Willensdorf à Vénus de Milo.
O que mudou na representação destes dois corpos de mulher?
Uma é a expressão de uma cultura primitiva, de há vinte ou trinta mil anos antes da nossa era.
Produto da visão de um artista - ou talvez de um shaman, numa tribu de nómadas caçadores para quem a questão fundamental era sem dúvida a da garantia da fertilidade e da reprodução.
A pequena estatueta era transportável, seguia com o grupo para onde quer que fosse e talvez possamos ainda imaginar que lhe fosse prestado culto, com sacrifício de animais, nalguma gruta onde repousassem por um tempo.
Os olhos daquele primitivo artista viam um corpo fecundo: seios e ancas largas, imagens de abundância.
O caso desta estatueta não é único, várias outras apareceram em escavações noutros lugares da Europa e da Ásia.

Interessante é comparar esta figura de mulher com outra Vénus, a de Milo, da época mais gloriosa da estatuária da Grécia clássica (séc.V A.C.).
Verifica-se desde logo a diferença: não se trata de um amuleto, transportável, garantindo algum benefício desejado, mas de uma reprodução, tão fiel quanto possível do que se imaginava ser a deusa do amor: Vénus, em tudo semelhante a uma linda mulher ( pois para os gregos os deuses eram como os humanos, tanto nas qualidades como nos defeitos, físicos ou morais).
O que mudou no olhar do artista criador?
O seu contexto social, religioso, cultural. Pois é no contexto, nas circunstâncias de vida que a arte se forma e se transforma, ao mesmo tempo que transforma os homens e o seu mundo.
Se na idade da Pedra tudo girava em torno da sobrevivência, no mundo grego, mais próximo do nosso, tudo gira em torno da proporção, da harmonia, da elegância.
Esta é uma estátua do século II A.C.
E já desde Platão, com a sua doutrina da esfera das Ideias
o Belo (como uma das Ideias Perfeitas) reproduz o Bom e o Verdadeiro:
Ética e Estética são esferas interligadas; e em ambas se reconhece a dimensão da Verdade, abrindo o homem ao Conhecimento.
Já não estamos perante uma sociedade de homens primitivos, mas sim perante uma sociedade evoluída e em evolução, com uma clara consciência de si: do seu corpo, da sua alma, do seu espírito.
Para as expressões da alma seria interessante estudarmos os grandes dramaturgos, como Eurípides, e algumas das suas tragédias, que espelham os dramas da humanidade, de outrora como de agora.
A Vénus de Milo difere pois da sua antecessora por se afastar daquele primeiro e primordial impulso e por exprimir, na materialidade do seu corpo harmonioso, o Reino das Ideias do grande filósofo, pai-fundador da nossa cultura ocidental.
Se na primeira Vénus o que nos atrai é o que nos espanta, o exagero das formas, nesta outra o que nos atrai é a harmonia serena.

Meditemos aqui sobre este conceito importante: o espanto, a admiração que a obra de arte causa, o incómodo, a perplexidade, o desejo de entender.
Não é arte aquilo que não provoca reacção, seja negativa ou positiva de negação ou interrogação.
A obra de arte interpela quem a contempla.Não deixa indiferente.
Daí a importância da arte numa sociedade que se deseja culta.
Entre os Modernistas salienta-se, em matéria de experimentação e interpelação, um dos pintores mais interessantes do século XX e que afirmava não ser surrealista: refiro-me a Magritte.
Cada um dos seus quadros, a começar logo pelos títulos, desafiadores, como o célebre do "ceci n'est pas une pipe", isto não é um cachimbo", colocado num óleo que representa um cachimbo, levanta a questão do real e da representação.
O nosso imaginário e a sua representação, ainda que numa arte próxima da figurativa- como a de Magritte aparenta ser, - serão sempre outra coisa, estarão sempre numa esfera para lá do real.
Daí que a denominação de surreal ajude a compreender.
A linguagem da arte é a linguagem do inconsciente, transposta, segundo os meios - pintura, poema, o que fôr - e dada a ver, materializada em cada obra.
Interessante é descobrir como em épocas diferentes e diferentes artistas - algo permanece intocado, uma espécie de "fundo", de arquivo de memória, que depois surge, com a sua marca própria de originalidade; mas a projecção dessa memória antiga, chamemos-lhe "arquétipo", gerada num inconsciente colectivo, arquivo da espécie humana, deixa traços.
É aqui que pretendo chegar: há traços de memória antiga, de figuras selvagens no bom sentido da palavra, no tocante à expressão do Feminino matriarcal, universal.
Da Vénus pré-histórica à mais recente de Picasso (ver o meu outro post) como no quadro de Magritte intitulado Discovery, de 1927, a descoberta da mulher é feita em analogia profunda com a origem: agora falando de Magritte com este corpo que ainda tem estrias da Árvore primeira, a Árvore da Vida de que a Grande-Mãe dá o fruto a comer.
Outrora como agora, o imaginário profundo tem raízes no nosso mais arcaico pensamento, que os surrealistas souberam explorar como ninguém.