Friday, January 29, 2010

Murnau e o Expressionismo Alemão




A UFA, Universum Film Aktiengesellschaft, foi fundada na Alemanha em 1917, para prestigiar uma nação que se queria pioneira em muitos domínios e também no da arte cinematográfica.
A produção do Fausto de Murnau, em 1926, serviu esse propósito, ao contar com a participação dos melhores actores, do melhor argumentista e até, para a legendagem (estava-se ainda na fase do cinema mudo) de um dos mais célebres poetas da época.
A lenda do dr.Fausto, o sábio cansado do seu saber e que aceita fazer um pacto com o diabo, é conhecida. Ganha juventude e experiência de vida, e acaba nesse percurso aventuroso por se apaixonar por uma jovem donzela crente e ingénua - algo que não estava nos planos de Mefisto, o diabólico tentador - e acabará por justificar, pela força desse amor tão puro, a redenção do velho sábio.
No momento final, quando a alma de Fausto talvez devesse estar perdida para Mefisto, é o amor de Margarida, na sua entrega e pureza que acaba por salvá-lo. Margarida e Fausto, unidos num só, exemplificam na obra de Murnau um ser completo, andrógino, perfeito, como os seres que Platão descreve no Banquete.
Os cultores da obra de Klimt hão-de recordar o célebre quadro O Beijo.
Se o filme, carregado de um idealismo algo ingénuo, nos pode parecer datado, a razão fica a dever-se mais ao tratamento do tema do que a qualquer outra razão: pois para a época, quando mal se estavam a desenvolver as técnicas da fotografia, a técnica de luz e sombra, a capacidade de encenação e enquadramento dos grandes planos, das cenas e movimentos de multidão - tudo faz desta obra uma realização pioneira , e de Mestre.
Murnau retira da lenda e da obra de Goethe apenas o que lhe convém para uma narrativa poética que se deseja de grande intensidade dramática ( o que nem sempre aos nossos olhos será conseguido, pois o excesso, na arte, não acrescenta, diminui , ao contrário do que se possa julgar; na arte o menos é mais, o mais é de mais! ).
Tinha havido versões e experiências anteriores - dos irmãos Lumière e de George Méliès em França, em finais do século XIX, bem como na América: um Fausto de 1900 e outro de 1909, do realizador Edwin S. Porter. A lenda e o herói que desafiava o mundo e o diabo atraíam os artistas. Outro ilustre, D.W. Griffith dirigiu uma versão actualizada de Fausto, com o título de Sorrows of Satan, Desgostos de Satã, no mesmo ano do filme de Murnau.
Mas este destaca-se em tudo das tentativas dos outros: bem ao gosto de uma germanidade feita de magia e mistério, como nos contos dos irmãos Grimm, abundam trevas e luz, fogos, fumos e nevoeiros,ventanias de alma, - tudo com a mestria que os técnicos alemães tinham desenvolvido à época, no que os críticos chamavam de "sinfonia de imagens".
Há uma herança da cultura Expressionista, na obra de Murnau, que explica muito do cuidado quase escultural com que rostos e massas humanas são tratadas nas cenas de maior destaque: grandes planos de Fausto, Mefisto ou Margarida, multidões correndo em desvario nas cenas de fuga à peste que assola a cidade.As cenas de multidão já tinham tido o seu Mestre em Eisenstein, no célebre Potemkine, de 1925.
Mas o maior mérito de Murnau é o cuidado com que a encenação era concebida; podia demorar horas e horas de ensaio, impacientando os actores, até se chegar ao momento da filmagem. Aos impacientes ele dizia: se não gostam, não voltem.
Referi a influência do Expressionismo na arte fílmica de Murnau:
algo que se vê nas danças da morte das multidões em fuga por causa da peste, nesse gosto do macabro, no culto do horror (que o levará também a escolher a história do vampiro Nosferatu, noutro dos seus grandes filmes).Note-se ( como na Roda do Tempo de que se fala na filosofia hindú ) como os temas se tornam, também na produção artística, temas recorrentes: foram este ano sucesso de vendas e agora serão sucesso de bilheteira os românticos livros/filmes de vampiros para adolescentes. Claro é discutível a sua qualidade artística, ao passo que na obra de Murnau o pioneirismo foi indiscutível.
O movimento Expressionista surge num momento em que a Alemanha antevê a guerra (e a miséria que acarreta consigo) o declínio moral e social que fora já antecipado em muitas obras de teatro e em muita de pintura produzida então e da qual Murnau era conhecedor.
As revistas contendo manifestos, poemas e poetas ilustres, são em especial DER STURM e DIE AKTION (1910) cujo interesse pela grande poesia francesa é manifesto: incluem logo desde 1911 traduções de Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, estabelecendo uma ponte com o século XIX literário, precisamente aquele de que os modernistas desejarão libertar-se, nos anos 20, após a guerra de 1914-1918.
É sobretudo no teatro e na pintura que o Expressionismo se revela com mais força: uma força que pretende ser toda feita do interior da alma, com suas amarguras, ilusões e desilusões, melancolias, sofrimento.Brecht é um dos dramaturgos de maior influência, com a peça BAAL; mas pouco depois, criando a doutrina do teatro épico e didáctico a sua preocupação será a de renovar, revolucionando politicamente a sociedade do seu tempo; outros continuarão com a linha de pessimismo radical que não antevê mudança, como se as visões de horror já fossem um prenúncio da guerra que se seguiu, a de 1939-45.
Yvan Goll, um dos poetas que pretende ajudar a que se entenda o seu propósito e o dos outros, escreve que o movimento não estabelece uma doutrina teórica claramente definida;integra todos os "ismos" dos vinte primeiros anos do século;e ainda:" em estilos muito diversos o expressionismo traduz acima de tudo o vivido".
É a vida, tal qual a vivem, a observam à sua volta, idealizam ou abominam, o que os expressionistas pretendem mostrar, "exprimir".
No teatro, para citar um outro vulto de grande renome e importância, Frank Wedekind, com as peças O Espírito da Terra e A Caixa de Pandora depois reunidas com o título de LULU representará os próprios limites da arte expressionista, vindo a inspirar um compositor como Alban Berg em 1929.
Sonha-se com uma Ética nova, uma Estética nova - numa sociedade a recuperar das ruínas da guerra.
E infelizmente este sonho não será cumprido, pois os movimentos da História giram em sentido contrário.
O HOMEM NOVO - para o qual até os futuristas tinham esboçado uma nova moda - transformar-se-á num perigoso FANTOCHE, mexido pelos cordéis do nazismo e do antisemitismo crescentes.
O óleo (colocado acima) de Emil Nolde, de 1917, intitulado JOVEM e PIERROT, revela, na sua forma grotesca e caricatural, como o mundo se tornara num circo, num cabaret de riso deformado, onde nenhuma forma de idealismo mais puro haveria de ter lugar.
A sonhada "Obra de Arte Total" que Wagner, no século XIX, concebera, guardará até aos nossos dias a mácula de ter sido idolatrada por um Hitler que a confundiu com as suas próprias ideias de uma germanidade particular, inexistente, sem nada de universal, ao contrário do que o compositor desejara para si e para as suas óperas na grandiosa inspiração que as sustentara.

Saturday, January 23, 2010

Conceitos e Práticas




Já neste blog se discutiu um pouco o que se entende por Representação, por Estilo, partindo de um ou outro exemplo concreto, como no caso de Magritte, ou de Nadir Afonso.
Outros exemplos se poderiam escolher.
Estou a pensar num muito vulgarizado, o de Vanguarda.
O que são afinal, em cada momento e em cada circunstância, as Vanguardas, literárias, teatrais, musicais, artísticas em geral?
O que as distingue das práticas existentes que se propõem renegar, renovar ou pelo menos alterar de um modo bem profundo e bem marcante, a ponto de com elas se iniciar um novo período estilístico de criação?
A Vanguarda, na criação, define-se pela inovação do estilo, ou do conceito que lhe subjaz ou por algum outro pormenor que deva ser esclarecido ?
Um pormenor que se prenda com a intenção, mais do que com o modelo? Será sempre e necessariamente Ideológica a arte de vanguarda? Utilitária? (como aconteceu em parte com o design do movimento Bauhaus)?
Quando o arquitecto Mies van der Rohe decide que não quer no Bauhaus de Berlin uma escola politizada, nem à esquerda nem à direita, pressupõe-se que a arte pode e deve ser livre de toda a ideologia (no sentido de sistema organizado que pode sobrepôr-se, orientando-o, ao artista e sua criação)?
Pode um modelo de pura anarquia conduzir um artista e sua prática? Ou na arte, como diz Nadir Afonso tem de imperar a Ordem ( que não é ideológica, é matemática e promove a harmonia).
Outro conceito, o de harmonia como ordem na criação.
E de que modo uma Vanguarda formatada por uma ideologia, seja ela qual fôr, consegue subsistir? Não passará de imediato a ser representante de um sistema, do sistema que se pretendia combater, inovando?
Como interpretar esta escultura de Umberto Boccioni, intitulada Formas Únicas de Continuidade no Espaço, datada de 1913, criada para corresponder às doutrinas expressas nos Manifestos Futuristas de Marinetti e outros, em que a novidade consistia em representar o movimento no espaço, a sua dinâmica, algo como a força veloz que tudo domina e tudo pode condicionar, como a pulsão profunda que nos anos de 1914-1918 conduzirá a Europa a uma guerra fraticida?
A distorção das formas corresponde ao que se imagina possa ser a distorção no espaço, mas também a distorção no social, no colectivo - o espaço em que se funda todo um imaginário de estruturas em profunda mutação.
Este é o modelo proposto do NOVO HOMEM para o qual Giacomo Balla, na mesma altura, tinha esboçado os modelos de um novo vestuário, criando a moda futurista masculina, de desenho amplo, permitindo o movimento, ombros largos, dando a sensação de uma dimensão extra de tamanho - o todo com um único propósito (incluído nos Manifestos) - o da cisão radical com os costumes, com as ideias (também da moda) e até mesmo com as regras da linguagem normal.
Por exemplo, para sublinhar que tudo teria de ser movimento, evitar adjectivos e advérbios, na criação literária, produzindo verbos em série; ou, como dizia Marinetti, destruir a sintaxe, usar as palavras "em liberdade... tal como nasceram"; ou ainda, despir a prosa da pontuação que a obrigaria a ser lida de certo ritmo e não outro (não foi José Saramago o primeiro, nem de longe, a praticar tal vanguardismo).
De repente as palavras, tornadas movimento, irão servir uma falsa imagem de liberdade e não a ideia, o conceito que a suporta e fundamenta.
Foi assim mesmo que a liberdade, sua ideia e sua prática, acabou por se perder.
A Europa assistiu à ascensão de várias formas de totalitarismo, algumas das quais se prolongaram por muitos e muitos anos, como nos contos de horror.
Mas será legítimo concluir que à distorção da forma corresponde necessariamente uma distorção do conteúdo (entenda-se do valor, dos valores)?
Ficam muitas perguntas, para poucas respostas.
No apogeu do Barroco, duas representações foram escolhidas por Jean Rousset para definir o movimento tal como se manifestava na pintura e na escultura: Circe e o Pavão. A saber, a transformação, a metamorfose (Circe) e a ostentação, a exuberância da forma ( o pavão ).
No caso destas vanguardas do século XX assistimos à fulguração de Circe - o movimento - mas no tocante à forma o que se propõe é, segundo os casos, ou a simplificação extrema, sendo o simples o perfeito, ou a sua desestruturação, como que antecipando o caos que em breve se viveria..

Monday, January 11, 2010

Clarividência

Este Auto-Retrato que Magritte pinta em 1936, intitulado A Clarividência, é mais uma vez a expressão formal da sua ideia do que é representação, neste caso do pássaro e já não do célebre cachimbo; mas ao pintar-se a si mesmo pintando, coloca ainda uma outra questão, evoca e convoca outros pintores, como Velasquez, no célebre quadro das Meninas: renova a questão do criador que se vê (se cria) a si mesmo enquanto recria os outros.
A composição e o papel que cada um se atribui é marcadamente diferente: Velasquez mantém-se discretamente de lado, dando o centro do espaço às princesinhas e acompanhantes; Magritte ocupa, ainda que de costas, um espaço predominante - mudaram-se os tempos, o artista já não é vassalo, é dono e senhor de si mesmo e da sua obra.
Não falaremos de um "através do espelho", como em Alice no país das maravilhas, mas de um através da tela - sendo a tela o espaço ideal (idealizado) de projecção do eu (eu criador).
O pintor está de costas, o rosto de perfil, mas não fixa nenhum pássaro visível, o que tem na mesa é um ovo (figuração simbólica do germinar da ideia).
Está de través, como também se poderia dizer; ou seja atravessado e atravessando dois mundos, o real e o imaginário que projecta no quadro.
E sabe disso, tem plena consciência do que é e do que faz, daí o título: clarividência.

Rosas e mais Rosas

A este óleo de 1961 deu Magritte o título de " Le tombeau des Lutteurs, o túmulo dos Lutadores".
Por aqui se vê como o conceito de realismo de um criador pode ser mutável: o título produz sobre quem vê o quadro a sensação de que algo mais do que a simples rosa ali se esconde, algo mais se pretende dizer; não será pois uma obra de cunho meramente formal, realista, fotográfico quase ( Magritte trabalhou em publicidade, conhece bem o valor do suporte fotográfico como mediador de realidade) mas antes uma proposta em que, pelo contraste do título, ele nos vem dizer " o que se vê num objecto é um outro objecto escondido".
Se estava na moda, com Gertrud Stein, afirmar " a rose is a rose is a rose is a rose...." ou seja o real é aquilo que vemos, mais do que isso é pura especulação, pois a nossa capacidade de apreender o real é limitada - havia aqueles que, contrariando essa moda, buscavam para lá do real apreensível uma outra dimensão, uma transcendência que, essa sim, conteria a verdade da Obra (seguindo, talvez sem o saber a doutrina de Platão do Belo e do Verdadeiro).
Já no início do século Rainer Maria Rilke (durante os anos de Paris fiel secretário de Rodin) se tinha debruçado sobre o mistério da Rosa, sua íntima essência, sua última perversidade.
Em belíssima tradução de Maria Gabriela LLansol para a editora Relógio d'Água (1996) encontramos o ciclo de 24 poemas que Rilke dedicou às ROSAS e de que escolho apenas um ou outro exemplo:
II
Vejo-te, rosa, como livro enorme
com inúmeras páginas, entreaberto,
contando, em pormenor, uma felicidade única
que nunca ninguém lerá: És um livro mágico

que se abre ao vento e que até, de olhos fechados,
pode ser lido...
de onde as borboletas saem assombradas
por terem tido o mesmo pensamento.

XXII
Rosa, afinal estás brotando
da campa dos mortos,
tu, que transportas
para um dia feito de ouro

a alegria inabalável.
São eles que o permitem?
Eles cuja cabeça oca
nunca soube tanto como agora?

Ou vejamos ainda esta última estrofe do poema XXIII:

A tua espantosa diversidade permite-te conhecer,
numa mistura em que tudo se confunde,
essa inefável concordância do nada e do ser
de que ignoramos tudo?

Rilke, o poeta da transcendência absoluta, permitindo que por trás dele se descubra a rosa do Paraíso de Dante, a luz do centro do universo tal como lhe foi misticamente revelada.

Outros, como Fernando Pessoa pela voz de Ricardo Reis, desejarão ser coroados de rosas:
"Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta."
(1914)

Pessoa era leitor de Rilke, cuja obra conhecia bem.
Num como noutro a pulsão da morte se transforma nesse desejo de rosas - que de tão absolutas se tornam inacessíveis ao destino mortal.
Eis ainda Ricardo Reis, em 1916:

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
de árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
....
....
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


Dir-se-á: a que nos leva esta deriva do pensamento sobre a rosa e sua efémera realidade?
Precisamente à noção de uma efemeridade que só a obra de arte torna real e duradoura. De cada vez que olhamos e vemos, que lemos e somos levados a sentir.





Estilos


Sem dúvida que a questão do estilo e dos estilos é uma que se prende com a marca dos artistas, distinguindo-os dos outros e uns dos outros.
O estilo é a assinatura, é a forma distinta e distintiva de cada um dar forma e expressão à realidade tal como a sente, a vê, a interpreta, sabendo-se que se trata de representação do real e não do real-em-si.
Deixo, por curiosidade, um pequeno poema de José Carlos Barros (ver revista Criatura 2008, no meu blog literatura e arte) em que se discute o que é o estilo:

PÁSSARO
O estilo é o que une o pássaro
e a sua abstracção. O estilo
é o que permite à ideia de pássaro
ganhar súbita leveza e aventurar-se
num vôo real sobre os telhados
e as árvores. O estilo
é o que transfigura as palavras
em objectos sensíveis
ao tacto. O estilo
é uma cicatriz, uma incisão
nos pulsos protegidos pela tradição
e pelos muros altos das casas.


Aqui temos, em forma poética condensada, duas afirmações implícitas:
O estilo é o que une (pela expressão formal) uma realidade (neste caso de pássaro) e a sua abstracção ( a ideia que temos dele).
Pode-se então discutir o que é, o que são, as ideias que se formam no acto de criação do artista: abstracções, representações formais.
E ainda, o estilo marca a ruptura com a tradição ( a tal ferida nos pulsos, os muros altos das casas) com o fechamento que a tradição implica.
Esta função de ruptura será particularmente apreciada por todos os "Ismos" do século XX: do Expressionismo ao Surrealismo, Futurismo, Modernismo em geral.
Resumindo, em dois artistas que mereçam tal nome não encontraremos nunca dois pássaros iguais...

Friday, January 1, 2010

Magritte le jour et la nuit



O ano de 2009 fechou para mim com uma edição dvd sobre a obra de Magritte:
Magritte, le jour et la nuit, filme de Henri de Gerlache.
A acompanhar o filme um complemento que inclui uma selecção cronológica de 60 obras pertencentes ao Museu Magritte de Bruxelas e um extracto de entrevista com o pintor em que este fala sobre a sua obra.
O título da entrevista é já de si muito importante: De L'autre côté du Miroir, do outro lado do espelho, remetendo para a obra de Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas e Do outro Lado do Espelho.
Desde o célebre quadro representando um cachimbo, tendo como legenda ceci n'est pas une pipe que a verdadeira discussão se instala: o que é uma pintura? (a mesma interrogação se poderia aplicar a um poema, a uma ficção...a qualquer obra de arte, pois é a essencia da obra de arte que se discute).
A pintura não é o real, é uma representação do real.
Aquele cachimbo de Magritte não é um cachimbo, pois é uma representação do cachimbo que ele tinha eventualmente à sua frente. Ou nem isso, do cachimbo que ele se lembraria de ter visto e ali o colocava como desafio à sua frente na tela.
Assim sendo é enorme, é absoluta, a liberdade do artista perante o mundo, perante os outros, perante si mesmo.
Magritte começa por afirmar isso mesmo, a inteira liberdade com que abordou a criação e a sua reflexão sobre ela.
Dizia não gostar de ser considerado um artista: tinha profissão, trabalhava para ganhar a vida. Eram as horas do dia. Depois chegava a noite, com a sua sombra, mas também com a sua luz, a luz da ideia que se apresentava, do impulso que se materializava, ganhando a forma das obras tal como as conhecemos: misteriosas, oníricas, desafiantes.
Os primeiros 50 anos do séculoXX sofrem a influência de novas correntes de pensamento, com destaque para as obras de Freud e Jung e a importância atribuída aos fenómenos do inconsciente, individual e colectivo (sendo este o contributo de Jung para a noção de arquétipo universal, transversal a toda a cultura e imaginário da humanidade).
São os cultores do movimento Surrealista, do DADA e afins que sobretudo se inspiram nestas novas discussões que, ultrapassando os domínios da Consciência e da Razão, rompem com novos caminhos para a criação artística como pura manifestação de uma outra linguagem, a linguagem do inconsciente.
Opondo sentimento e emoção à razão, como já no século XVIII Goethe e os grandes Românticos tinham feito, eivados de um pensamento místico, ora mais gnóstico e hermético ora mais simplesmente panteísta, conforme as obras e os casos, os surrealistas como André Breton, fundador do movimento em França e escrevendo o primeiro Manifesto de 1923, os pintores como Salvador Dali (primeiro colaborando depois cortando com o movimento por considerar que tinha sido demasiado politizado) os cineastas como Bunuel e tantos outros (cabe recordar os irmãos Prévert, Jacques o poeta e Pierre o cineasta de Paris) foram tecendo a grande teia de pensamento e acção que sustentará também Magritte com a sua obra.
Referi a escolha do título do dvd como sendo especialmente adequada ao jogo que se verifica de luz e sombra, ou de simples contraste e de recorte, - algo que vinha da fotografia a preto e branco, dos primeiros filmes de Murnau, entre outros exemplos que se poderiam buscar.
Vamos assim descobrindo que há uma tradição, um suporte cultural, literário, filosófico, por trás da obra de Magritte. Nem de outro modo poderia ser, a obra de arte não é produto de acaso e quando se fala de inspiração essa mesma inspiração provém de um tecido mítico ( e por vezes místico) interiormente incorporado ( ainda que inconscientemente).
Outro pintor é citado quando se fala de Magritte: refiro-me a DE CHIRICO, que teria sido uma das suas influências.
De Chirico pertence à escola italiana dos pintores da escola dita metafísica, precisamente pela dimensão onírica que cultiva, sendo para tais artistas o inconsciente e o sonho, como sua directa manifestação, a prima materia da sua criação.
Tal como os alquimistas da Idade Média operam sobras as visões, as imagens contidas nos seus sonhos e não sobre a chamada realidade objectiva com que poderiam deparar-se ( é o caso da pintura dita realista, ou naturalista, cujo conceito mesmo assim é discutível: a paisagem de um romântico do século XIX não é a paisagem de um douanier Rousseau, e ainda menos a paisagem de um van Gogh.
Voltamos à questão da arte como representação.
De Chirico representava as suas paisagens lunares, de horizonte largo, indefinido, quase infinito; e pousadas nelas figuras estáticas, evocando quem sabe se deuses perdidos de uma muito longínqua e oculta pátria de mitos e sonhos por decifrar.
Com a sua obra estamos em pleno na dimensão que estrutura o imaginário arquetipico tal como Jung o definiu, ou mais longe um pouco no mundo das Ideias de Platão, não menos difícil de entender. Algo que o artista pode não entender, porque as vive.
O crítico e o estudioso é que têm de as entender para entender esse mundo da criação artística.
A representação é a reprodução idealizada, projectada em determinado espaço ( no caso da pintura) de uma determinada realidade que em si mesma não se pode atingir.
Das Ideias (em sentido platónico) não contemplamos a essência mas tão somente o seu reflexo, projectado como sombra na Caverna.
Em resumo e como desafio, o cachimbo de Magritte é a projecção da sua ideia de cachimbo e não o cachimbo-em-si, essência na realidade inatingível...
E o que serve para desconstruir a realidade do cachimbo serve, no caso da arte, para tudo o mais.


(Ler mais sobre Magritte e suas leituras e preferências no meu outro blog Literatura e Arte)