Saturday, November 29, 2008

Estética



De José Gil, A Imagem-Nua E As Pequenas Percepções, ed.Relógio d'Água, Lisboa, 1996 (tradução do francês de Miguel Serras Pereira).

Uma obra de leitura obrigatória para quem se interesse pelas questões da percepção do Belo, através das obras de um Duchamp, de um Malevitch e outros, discutindo pelo caminho o pensamento de Kant, mas e acima de tudo abrindo a doutrina das pequenas percepções na experiência estética, de que modo se pressentem, se manifestam e influenciam a sensibilidade e o pensamento, permitindo uma melhor compreensão do que é o fenómeno estético, nos nossos dias e não só.
Comecemos pela "visão do invisível".
Diz o autor:
"A experiência primeira é a da imagem intensiva.Antes de a percepção se estabilizar, se fixar à distância e se impor, o mundo da primeira infância organiza-se em torno de vagas sensoriais num turbilhão, imprevisíveis.Antes da consciência perceptiva, há as variações da imagem. Porque a sensação desabrocha em imagens, tal como a percepção: o bloco emotivo que as atravessa e as envolve mantém-nas ainda soldadas, indiferenciadas, sincronizadas" (p. 23).
Repare-se como estas observações de imediato nos ajudam a ver/ler melhor, muito melhor, uma obra como a de Paula Rego, que se constrói a partir, precisamente, de um conjunto de imagens resultantes do mundo da infância, mas que a mão ordena, à medida que a consciência as recebe exprime. 
Pois se é certo que a experiência estética, como sublinha José Gil, " não visa um sentido", " é desinteressada", na medida em que nada exige em troca a não ser esse mesmo prazer estético, não é menos certo que procura e oferece uma determinada visibilidade do invisível, um "aparecer singular do ser e do espírito", citando outra vez José Gil (p.24).
Fernando Pessoa, o supremo interrogador da consciência, deixa bem claro este percurso, num célebre poema do ciclo de Além-Deus:

I/ Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando-
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver? 

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é ôco-
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo- eu e o mundo em redor-
Fica mais que exterior ".

O poema continua, descrevendo, depois da experiência do Vazio, a Iluminação de Deus.
Mas o que nos interessa é a descrição de como a imagem primeira, do rio a correr, e a percepção desse facto, de que o rio está a correr e o poeta a olhar para ele, o conduzirá a uma interrogação, também ela primeira, do que é o próprio ser. 
Assim, a interrogação é a seguinte: o que sou eu, que aqui estou, perante o rio que corre?
No ôco do pensamento que então se forma, no vazio de onde tudo emana, imagens, percepções, se dará  então o encontro com Deus: "E súbito encontro Deus".
A pequena percepção do rio conduzirá o poeta, ao pensar no significado da sua existência, no seu estar-ali, diante do rio (imagem tradicional da vida) a uma percepção maior, que se forma no vazio da própria consciência, segundo as descrições mais do que abundantes da mística tradicional.

Mas o poema V/Braço Sem Corpo Brandindo Um Gládio nos levará muito mais longe, para além da percepção abismal de Deus, tida  no início:

Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?   E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de fôlhas vestida-
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando- o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real? 

Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo?
Quem é que me vê?
Erro-me...E o pombal elevado
Está em tôrno na pomba, ou de lado?

A interrogação aprofundou-se, posto de lado o mistério de Deus, que permanece incognoscível (... grande Intervalo/ Mas entre quê e quê) e centra-se agora na própria consciência do eu, suporte de uma existência que é interrogada, também ela, sem que surja resposta de imediato.
Não haverá resposta, mas permanente interrogação, e nisso reside a modernidade do poema, que podemos continuar a decifrar lendo um outro, mais definido como proposta inovadora, Chuva Oblíqua, matriz do Interseccionismo que Pessoa viria a propôr como seu contributo para os ismos do tempo. 
Em Chuva Oblíqua cruzam-se duas paisagens, uma exterior, de uma Lisboa marítima, outra interior, de um sentimento ou de uma consciência de si já dividida em que não se distinguirá a matéria real da matéria do sonho: "Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo.../Não sei quem me sonho...".
O poema é composto por seis estrofes, cada uma jogando com as intersecções que serão sua marca, num jogo alquímico de elementos  opostos:
Terra/Mar 
Sol/ Sombra
Horizontal/Vertical
Lado de cá/Lado de lá
Interior/Exterior
Tempo/Espaço
Presente/Passado
Branco/Negro

para culminar, na estrofe V, com uma imperfeita imagem do andrógino mítico, descrito pela fusão de "dois grupos que se encontram e se penetram/ Até formarem só um que é dois"  banhados por uma luz  de lua e de sol, que ali também se fundem, no meio de um conjunto de imagens soltas, desconexas, recordando o exercício proposto da intersecção surreal.
Há duas realidades no poema, e em cada estrofe a "hora dupla", como o poeta a define, permite ver não a realidade mesma mas "o pó das duas realidades": o rasto, a marca imaginal, "pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...".
Finalmente na estrofe VI se revela o processo de incantação sofrido,ou provocado: o maestro ( a Razão condutora? a Emoção primeira?) sacode a batuta e o poeta recorda a sua infância, quando brincava no quintal, e conclui que a sua infância está em todos os lugares: assim, como num processo de análise minucioso, ainda que surpreendente, pois não oferece paz, nem solução.
Confundem-se as imagens ao ritmo de uma composição alucinada, como o girar da bola da infância no quintal, até que
 " A música cessa como um muro que desaba/ A bola rola pelo despenhadeiro dos sonhos interrompidos" 
 e o maestro , tornando-se "preto" agradece com uma bola "branca" no alto da cabeça "Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo..."
Foi um poema-sonho, um poema-viagem pela esfera do inconsciente, o Intervalo onde nem Deus nem Homem afinal se revelam plenamente, deixando apenas um apontamento: o da infância onde tudo teve, tem e pode ou não  vir a ter lugar.
Como tive ocasião de escrever em ensaio publicado há anos ( S.Reckert,Y.Centeno, Fernando Pessoa, Tempo, Solidão, Hermetismo, 1978 ), é útil recordar que Chuva Oblíqua foi escrito logo a seguir a O Guardador de Rebanhos de Caeiro, marcando a grande ruptura heteronímica do poeta.
Chuva Oblíqua seria, nas palavras do poeta, a tentativa de regressar a si mesmo: 
"O regresso de FernandoPessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só...a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro (Obra Poética, 683).
Na impossibilidade de regressar à inconsciência inocente da infância, como propõe Caeiro (Mestre, mas ingénuo...) regressa o poeta a si próprio: para sempre consciente e dividido;
Como afirmou Eduardo Lourenço, Chuva Oblíqua é uma tentativa vã de unificar o que se tinha quebrado. A par de uma aspiração forte à Unidade o que se verifica é uma fragmentação definitiva, o Tropeção no Intervalo, a Queda no Abismo da própria consciência indefinida.
O poeta atravessou o limiar das múltiplas sensações, vindo a descobrir que nada na arte tem limite.
 






Wednesday, November 26, 2008

As Meninas



Pelas mãos de Paula Rego e de Agustina Bessa-Luís, uma pequena obra-prima, de pintura e de prosa, entre o comentário e a ficção  a que a pintura de Paula incita. Por um lado tudo é memória, quase biografia, se não fosse que a Arte da Pintura transforma tudo aquilo em que toca. E se não fosse que também a Escrita de Agustina é transformadora, modeladora de um real que ela não vive sem apelar ao que nela também foi, ou é, memória transmutada. Observa Agustina que 
" A obra de Paula é autobiográfica, mas é sobretudo assustadora.Ela é assustadora. Mas porquê? Há alguma coisa de inquietante no que se distingue do normal, do admitido como tal. Artista Associada da National Gallery, em Londres, tem direito a um atelier no edifício do museu e a um salário. Isto talvez a moleste, sente-se um cão acorrentado (...) As histórias mais aterradoras são inspiradas por uma noção de imensidão. Nos contos de Poe há essa ideia, flutuante e dinâmica, de qualquer coisa que é desmedida e inexpugnável".
Mas o mais interessante, nas observações de Agustina, é a comparação que faz do Desenho de Paula com a Escrita (as Maiúsculas são minhas).
" O desenho de Paula é uma escrita. Paciente, determinada, barroca e condescendente ao mesmo tempo. É uma escrita que se aprende na solidão, que pede a aprovação desse mago inteiror que se chama arte. Onde nasce a arte? Que caminhos percorreu até chegar a essa hábil construção sobre os abismos do nada, colhendo de passagem as formas, as variações, as presenças ? Já estava pronta nas grutas de Lascaux e nas abóbadas de Altamira. Não era uma tribu quem pintou aqueles bisontes e gazelas. Era alguém dotado, que se escondia no negror da caverna para pintar, levando com ele uma lâmpada de óleo e sujando os dedos de fuligem e de sangue para desenhar o que vira num relance, quase só um vislumbrar agudo da realidade. A realidade  era a sua obra e não o que acontecia à luz da manhã, quando as feras voltam da caçada indo beber aos lagos e deixando na areia remota a marca da garra vermelha, pesada e ainda fumegante de morte.
O desenho é uma pronúncia, como a da fala. Onde nascemos, que influência tiveram em nós as primeiras vozes que ouvimos, as corruptelas, o som e a intenção que ele transmite, se de agressão ou carinho, tudo aparece no desenho da escrita (...) A fala é igualmente feita pelos hábitos da infância (...) o desenho, como a fala, traduz essa experiência inocente da primeira idade".

Acrescento agora eu que pelos caminhos da vida a inocência se perde e, na pintura como na prosa destas duas admiráveis artistas do nosso século XX, a grande lição é a da lucidez que se adquire: vivendo, em primeiro lugar, a plenitude do real, ainda que imperfeito; e guardando a memória do que foram as primeiras e únicas Iluminações de um passado ora presente ora distante.

Saturday, November 15, 2008

Shadows, de Inez Wijnhorst




Inez Wijnhorst tem apresentado regularmente, em várias exposições, uma obra de grande impacto cultural e não apenas artístico (não se entenda, pelo que digo, que a dimensão estética da sua obra é por essa razão menor, antes pelo contrário).
Não há arte sem cultura, a história tem mostrado que em cada grande artista, capaz de criar e inovar, renovando-se, o suporte cultural, seja filosófico, literário ou outro está sempre presente, embora não explícito, na maior parte dos casos.É preciso saber encontrá-lo, nisso reside o interesse, o mistério.
O criador expõe-se, consciente ou inconscientemente. E consigo expõe o seu mundo, a cultura que o formou, o desenvolvimento que teve, as memória que guarda ou que desloca para uma outra esfera. Nessa esfera podem ficar guardadas, sem que estejam reprimidas, para usar a terminologia de Freud, e podendo reaparecer a propósito de qualquer reminiscência. Penso em Proust, claro, com a evocação da Petite Madeleine. O sabor desse bolinho desfeito com chá na sua boca fá-lo estremecer com a sensação de que algo de extraordinário lhe está a acontecer. E cito:
" Um prazer delicioso me tinha invadido, isolado, sem que eu  entendesse a causa. De imediato me tinha tornado indiferentes as vicissitudes da vida, os seus desastres inofensivos, a sua brevidade ilusória, do mesmo modo que o amor nos faz sentir, preenchendo-me com uma essência preciosa: ou melhor, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde me podia chegar essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao sabor do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infnitamente, não podia ser da mesma natureza...Pouso a chávena e viro-me para o meu espírito.É a ele que cabe encontrar a verdade.Mas como?...Procurar? não só: criar."
E chegamos, com a minuciosa descrição de Proust, que aqui simplifiquei, ao exercício profundo do acto criador: 
"O que palpita assim , no meu interior, deve ser a imagem, a recordação visual que ligada a esse sabor a faz chegar até mim...Conseguirá atingir a superfície da minha clara consciência, essa recordação, esse momento antigo que a atracção de um instante veio de tão longe solicitar,comover, erguer do fundo de mim mesmo? Não sei". 
A imagem, qualquer que seja, transporta consigo uma interrogação. 
Podemos, de início, partir de uma ideia, mas logo ela se transformará em imagem, de energia bem mais poderosa. E então, a-posteriori, no esforço de clarificar esse processo da imagem que de súbito surge, poderemos tentar recuperar a ideia. No caso de Proust ele mesmo explica o caminho, embora confesse não ter a certeza de que o entenderá cabalmente. A obra de criação, no seu caso como no caso de todos os criadores, permanecerá sempre, de algum modo, fechada em si mesma, desafiando as interpretações.
O mais recente conjunto de obras de Inez Wijnhorst, que ela intitulou SHADOWS, faz precisamente isto: desafia as interpretações.
Podemos regressar às obras anteriores, sobretudo ao conjunto de caixas, aglomerações múltiplas e multiplicadas, numa articulação mandálica, de geometria perfeita (de colmeias ou de formigueiros) ora abertas, ora fechadas, sem chave visível (como no caso de Alice, com as suas portas). As caixas, como as gavetas, pertencem ao imaginário do espaço mais íntimo, da casa, do quarto, o espaço onde a protecção e o refúgio ainda são possíveis, face à agressão temível ou temida do mundo exterior.
Mas eis que agora, neste novo conjunto, esse espaço se abriu: e dele emergem as Sombras.
Anima, Animus - são os termos que ocorrem, formas emergindo de um fundo obscuro, que alguma coisa do real mais vivido ou mais sonhado, fez surgir no espaço branco do papel. Poderia falar de uma pulsão que o mito do andrógino bem representaria. Mas não me parece que seja esse o caso. Também aqui, como com a Madeleine de Proust, não é fácil entender o processo que leva ao que Gilbert Durand chamaria a "condensação" da imagem nesta forma determinada, de dois seres sugerindo um ser duplo, ambos, como Orfeu e Eurídice, emergindo da treva de que tentam escapar. 
A árvore que por trás se desenha, que árvore será: a do Conhecimento,  que provocou a Queda? ou a da Vida Eterna, a que o par primordial não teve acesso? 
A Imagem aí está, a confrontar-nos com uma interrogação também ela primordial.O que nela está latente só se tornará manifesto quando a nossa leitura se tornar mais límpida, mais clara. 
Durand fala do "oco", do vazio, e do "Verbo" ( o "dizer" ou "fazer" no acto da Criação) . Talvez por aqui se entendam as Sombras que Inez foi descobrindo: elas emanam desse oco, desse Vazio mítico, fundador, e adquirem, pela sua mão, o novo estatuto de Presença que se quer actual e actuante, e não apenas latente, no universo onírico depressa dispersado, ao acordar.São conhecidas as várias histórias dos homens que não tinham sombra, por ter vendido a alma ao diabo.Sendo aqui a sombra a imagem da  sua própria essência,  do seu ser. Peter Pan também perdeu e procurou a sombra que lhe fugia: foi Wendy, a menina, Anima incipiente, que lha coseu e entregou de volta, a ele, puer eternus, vivendo para sempre na nossa imaginação. 
As Sombras de Inez são algo mais: formas que amadurecem num caminho que não está terminado, mas em que o jogo complexo do Yin e do Yang ocupará um lugar.
   
  



 

Friday, November 7, 2008

A Diferença


A diferença:
física
psíquica
religiosa
cultural 
social 
política
( e last but not least, literária)

Ex. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação
William Shakespeare, The Tempest
Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas
Tim Burton, Eduardo Mãos de Tesoura
Maria Velho da Costa, Myra

Foram as viagens marítimas e a descoberta de outros povos, outras culturas e religiões, que ao mesmo tempo encantaram e assustaram os navegadores e os políticos, que ajudaram a reorganizar uma nova visão do mundo, dando lugar à diferença e ao outro .
Há, desde os séculos XV- XVI, muitos relatos de viagens, de naufrágios, de conquistas que foram maravilhando os Senhores do Ocidente, em particular Espanha, Portugal e Inglaterra. 
Desde a Carta de Pero de Caminha, sobre a descoberta do Brasil, aos relatos, ao tempo considerados miríficos e mentirosos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ( a piada corrente era Mentes,Pinto? Minto) passando pela obra-prima de maturidade da peça de Shakespeare, A Tempestade -sem esquecer a Utopia, de Thomas More- todo um outro mundo se oferece ao imaginário tradicional.
Encontram-se, nos outros povos, modelos que deveriam, dizem os narradores, inspirar o comportamento das sociedades da época e dos seus condutores seculares e espirituais.
Modelos de ingénua integração na natureza, como no caso dos índios do Brasil, ou de requintada organização social, de delicada deferência para com os estrangeiros, como relata Fernão Mendes Pinto, ao ser recebido na corte do Japão.
Na Grécia antiga quem não era grego, no sentido de ter recebido a educação que modelava os comportamentos e as inquirições filosóficas do tempo, era chamado de "bárbaro". E tal como noutros casos conhecidos, os bárbaros, uma vez conquistados, não tinham outra esfera que não a da escravatura.
A esses "outros" no interior da moldura social não eram reconhecidos direitos.
Foi assim , durante séculos, até que no século XVIII se ponderou novo modelo: de liberdade, igualdade, fraternidade, pelos filósofos da Revolução, e de respeito pela diferença de raça, côr, cultura, estatuto social, religião, pelos fundadores da Maçonaria. 
É assim que veremos, em Nathan o Sábio, de Lessing ou na Flauta Mágica, de Mozart  os novos ideais de respeito pela diferença.
Mozart coloca na boca de Papageno, respondendo ao Príncipe Tamino que lhe pergunta
 "quem és tu? " uma resposta óbvia: 
" um homem, como tu ! "
Assim começa, logo no primeiro Acto, a lição moral desta magnífica ópera.

Lisboa é hoje multirácica, multicolor, multilingue, multireligiosa.
Há acasos felizes, e eis que Maria Velho da Costa nos presenteia com um romance novo, numa altura em que a questão da diferença pode voltar a fazer sentido, nem sempre pelas melhores razões. 
Outrora saímos e voltámos, agora outros saem e talvez, no sonho de uma Europa utópica, não desejem voltar nunca, aspirando a ficar por aqui. 
O que oferece Portugal a todos esses, jovens ou menos jovens, que aqui chegam no sonho da Demanda?
Deixando de lado o passado, fiquemos no presente que já contém um futuro:
Sugiro que se leia MYRA. Enveredaremos por uma aventura literária, pessoal, social e linguística ímpar, como em todos os livros de Maria.
           



Friday, October 24, 2008

Cultura e Culturas

Desde que há humanidade que há a manifestação de uma cultura própria, evoluindo desde os primórdios da civilização até aos nossos dias. Só o homem pode criar cultura, ser sujeito e objecto dela, pois só o homem tem capacidade de simbolizar, de criar mitos, de marcar e memorizar a evolução com os seus cortes próprios de mudança. 
1.
As culturas arcaicas, primitivas, nómadas, de que as cenas de caça nas cavernas do paleolítico e do neolítico deixam testemunho, ex. de Foz Côa, entre nós, Altamira em Espanha, entre outras, noutros espaços ainda, como em França e que gradualmente têm sido descobertos e estudados. 
 São Formas Incipientes, propiciatórias de bons auspícios na caça,  o produto de um imaginário marcado pela magia chamânica, visionária, elevando-se em transe a um além que é ainda uma forma intuitiva do mundo natural a que se sente íntima ligação.
O homem não tem ainda consciência nítida do que o separa da natureza em redor, identifica-se com ela, com os seus elementos, que diviniza, e procura conciliar de vários modos.
O culto religioso que se desenvolve é de natureza matriarcal, celebra-se a Deusa-Mãe, em diversos pontos do globo, de modo muito semelhante: cultos em cavernas, em florestas, com sacrifícios humanos, rituais, em que o amante da deusa é iniciado,  imolado,  depois de castrado. São rituais sanguinários, em que a imolação é suposta garantir uma forma de eternidade.
O ex. mais citado é o culto da deusa Cybele,e do seu amante Attis.
Uma fonte útil será a HISTÓRIA DAS RELIGIÕES de Mircea Eliade.
2.
O melhor testemunho da passagem do matriarcado ancestral, pagão, para uma forma de patriarcado monoteísta é a que se encontra no Antigo Testamento, com o deus Jeová, a sua criação do mundo e criação do homem, andrógino, na primeira versão do Génesis 1, quando se diz que criou o homem à sua imagem e semelhança, homem e mulher o criou.
Um eco semelhante se encontra em Platão, no BANQUETE, na descrição do mito do Andrógino, quando descreve os seres existente, circulares, completos, macho e fêmea, castigados pela ousadia de se identificarem aos deuses:  são cortados ao meio e daí resulta a busca, que o impulso amoroso representa, de se completarem uns aos outros, unindo as metades separadas. 
Mas na cultura e sociedade dos gregos  havia outras formas: só masculinas e justificam o desejo homossexual; e femininas, justificando o desejo lésbico. Tudo foram representações de um imaginário que procurava entender e justificar a variedade dos comportamentos sexuais.
3.
Na épica de GILGAMESH , inscrita nas tabuínhas cuneiformes, temos uma recolha de várias tradições ancestrais do culto do Feminino, e da imagem da importância  civilizatória dos cultos da prostituição sagrada, como forma de iniciação a um estado superior, mais requintado, de experiencia social.
Mas noutros cultos, igualmente antigos,como o hindú, o lado feminino é visto como um lado de treva, ligado à morte, ainda que ritual . O sacrifício pelo sangue é suposto conceder uma espécie de vida dupla, terreal e divina, fecundidade, prosperidade, a quem o pratica: sacerdotes que são na verdade os condutores das decisões dos reis, tal como se verifica noutras civilizações: dos Maias, por exemplo.
4.
Ainda na mesa tradição do Antigo Testamento há a memória de sacrifícios humanos, mas já em transição: Jeová pede inicialmente a Abraão que sacrifique o seu filho, como sinal de obediência plena, mas no momento em que isso vai acontecer o filho é substituído por um animal, um cordeiro, que será sacrificado em seu lugar.
Este é um ponto marcante na evolução do ser humano e sua relação com a vida e o respeito por ela. Os animais serão as vítimas votivas, e já não os humanos como até então.
Também no Antigo Testamento se verifica uma mudança civilizacional: de um matriarcado primitivo, algo selvagem, se passou para um patriarcado de modelo social mais regularizado, com normas de comportamento ( e de castigo) , como os Dez Mandamentos, e todo um conjunto de leis e de regras de higiene, que ainda hoje se mantêm, como as regras do culto islâmico, com os seus jejuns e proibições de comer carne de porco, entre outras.
5.
De todas estas formas de civilização, no seu progresso gradual, nos ficaram testemunhos; em desenhos gravados na pedra, em escritas primeiras, como a cuneiforme, os hieroglifos egípcios, ou a escrita dos Maias,  e outras mais antigas, ainda por decifrar.
Para não falar dos idiogramas chineses que, não sendo tão figurativos como os hieroglifos, estilizados, são contudo imagem e representação conceptual em simultâneo ( e daí a dificuldade para os ocidentais de traduzir bem o chinês, sobretudo o Pequinense, que tem mais de 7000 caracteres-base).
A escrita chinesa, como imagem artística e representação filosófica, poética, em simultâneo, tem inspirado muitos dos artistas modernos que pela sua contemplação chegaram a um modo próprio de pintar,como é o caso de Henri Michaux, ou entre nós Ana Hatherly.
6.
A Antiguidade Clássica (greco-romana) foi o grande caldo de cultura em que se formou a chamada cultura ocidental, juntamente com o Cristianismo posterior, que veio humanizar a religião dos povos pagãos e  judeus. Pois até ao momento da iniciação cristã a noção de que o homem deve amar o próximo como a si mesmo, com tudo o que esta noção implica, não existia. O Cristianismo traz um novo olhar sobre o outro, a relação com o mesmo, que somos nós, e a relação com um Deus Criador que pela oferta do seu filho redime os pecados de uma humanidade que já tinha sido ameaçada de destruição mais do que uma vez: com o Dilúvio, com os castigos de Babilónia e a orgulhosa Torre de Babel,  Sodoma e Gomorra, e outros episódios, cuja dimensão simbólica é estudada por Paul Diel, em LE SYMBOLISME DANS LA BIBLE.
Ainda neste contexto não podemos esquecer a importância dos mitos e da mitologia grega, bem sublinhados na obra de Walter Burkert, MITO E MITOLOGIA, em tradução, como sempre magistral,de Maria Helena da Rocha Pereira.
De HOMERO só se conservou, ao lado da ILÍADA, a ODISSEIA, em vários aspectos comparável às aventuras do Gilgamesh mesopotâmico.É uma história de aventuras e de regresso a casa, tendo pelo meio uma sucessão de narrativas , "autónomas", como diz Burkert,  inseridas para consolidar memórias de lendas mais antigas, do passado:
o Cíclope antropófago, a coragem e a manha de ULISSES, que o cega, e consegue fugir da caverna com os seus companheiros,a história de Circe, a feiticeira que transforma os visitantes em porcos, ou a fuga às temíveis Sereias que encantam e fazem naufragar os navios com os seus marinheiros- tudo se manterá no imaginário ocidental, transitando para lendas e contos populares de todo o  mundo, em cuja matriz se reconhece boa parte destes mitos.
A bravura de Ulisses, o seu engenho, demonstram a alta opinião que os gregos antigos tinham de si mesmos, projectando a imagem de um povo civilizado exemplar- sendo que os outro seriam "bárbaros"  a necessitar de uma outra educação.
Resumindo, com Burkert:
" Explorar o mito em geral, a partir das categorias de Freud, foi o que empreendeu fazer C.G. Jung.Que os mitos eram sonhos colectivos, tinham-no já afirmado outros discípulos de Freud". A tese é alargada por meio da teoria dos Arquétipos do Inconsciente colectivo, funcionando como memória social, oculta, portadora de sentidos diversos, que em dado momento e circunstância se poderiam objectivar nesse tipo de narrativas míticas.
Regido por "uma lógica oculta", o Espírito manifesta-se, através das suas criações mais bizarras.Não se esgotará por isso nunca, por muitas teorizações que se façam, "o variegado e profundo conteúdo dos mitos" (Burkert, p. 36).

É na Iconografia da Idade-Média e do Renascimento, bem como em muita estatuária, que se conservará a memória desta passado antigo, com suas lendas e mitos.
De origem fundamentalmente religiosa, mesmo quando se ocupa dos temas mitológicos pagãos, só pouco a pouco cede o lugar à descrição e apresentação do novo mundo, de uma burguesia ascendente, de que o Retrato será o testemunho cultural mais importante; retratos e interiores, naturezas mortas com abundância de caça, peixe, frutas, mostram como é dentro de casa que se vive, e já não nos Ágoras abertos dos gregos ou dos romanos. 
Agora os Palácios, a corte, ou as casas, da burguesia ascendente, eram os espaços onde uma nova cultura se produzia.Evolui-se de uma ligação religiosa primária ao mundo natural (regido pelos ciclos das estações e cultos que o acompanhavam) para um mundo laicizado, secularizado, regido por normas sociais hierarquizadas, é certo, mas tendo por fim a ordem própria das várias esferas do povo, do clero e da nobreza., bem definidas, até ao ponto de ser legislado o vestuário que cada classe poderia usar.
Pairando acima  houve o império do Papa, no Vaticano, enquanto se discutia a origem divina di poder do Rei, algo qu culminará nera dos Absolutismos dos séculos XVII e XVIII até que a Revolução Francesa lhes ponha termo, tal como já no século XVII Cromwell o tinha feito com a Coroa Inglesa, mandando decapitar o rei.
7.
A verdadeira revolução cultural dá-se com o Humanismo e  o Renascimento de que figuras como Erasmo de Roterdão, Thomas More e a sua UTOPIA, e outros pensadores como Reuchlin, que traduz a Kabala judaica, Pico della Mirandola, que escreve o Discurso sobre a Dignidade do Homem e outros, pintores como da Vinci, escultores como Miguel Ângelo, cientistas como John Dee na corte de Isabel I, anunciando tudo isto o que vai ser a grande aventura dos mares, das Descobertas Marítimas, que verdadeiramente modificaram tudo o que se julgava saber sobre o mundo:
a terra não era plana, era redonda,
 o sol não andava à roda da terra, era o contrário,
e existiam tantos e diferentes povos e civilizações, como os do Brasil, os da China e do Japão, descritos estes por Fernão Mendes Pinto,na sua PEREGRINAÇÃO, com uma tal capacidade genial de dar a ver, que o livro se tornou best-seller no seu tempo.
8.
A descoberta da DIFERENÇA foi o que permitiu abrir caminho para outras formas de ver e entender o mundo, tanto como o homem.
Abriu-se caminho para um individualismo maior, uma independência que já LUTERO, com a sus REFORMA, na Alemanha do século XVI, proclamara. Independência das normas e dogmas impostos pelo Papado, valorização da consciência e independência  individuais nos domínios da religião e da moral.
Esta nova ideia de que o homem, ser autónomo, dotado de razão própria, capaz da escolha própria do seu destino, é uma ideia que irá modificar o modo como a sociedade e o mundo são vistos e serão representados, daí em diante.
É nesta altura que se forma o modelo do que hoje chamamos de época moderna.
Aí , e sobretudo no século XVIII, teremos a matriz das ideias que ainda hoje nos regem.




Friday, October 17, 2008

A racionalidade grega


Citações de Heraclito (dos Fragmentos):

27. O que aguarda os homens depois da morte não é nem o que eles esperam nem aquilo em que crêem.
41. A sabedoria consiste numa única coisa,conhecer o pensamento que governa tudo em todo o lado.
43. Não  podemos encontrar os limites da alma, por mais caminhos que sigamos, de tal modo estão tão profundamente enterrados.
49. Descemos e não descemos o mesmo rio; somos e não somos.
54. A harmonia invisível vale mais do que a visível.
55. Prefiro tudo o que se possa ver, ouvir e aprender. 
81. O que existe em nós é sempre uno e o mesmo:vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice; pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente.
91. Não se desce duas vezes o mesmo rio.
101. Eu procurei-me a mim mesmo.
101@. Os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos.
109. Mais vale esconder a ignorância.
112. O pensamento é a mais alta virtude.
113. O pensamento é comum a todos.
116. A todos os homens é dado conhecerem-se a si próprios e fazer prova de sabedoria.
119. Para cada homem o seu carácter é o seu daimon.

O "milagre grego", nos primórdios do pensamento ( da descoberta da Razão)deu aos humanos os princípios essenciais da sua actividade nos variados domínios da filosofia, da história, das ciências, bem como da variedade dos géneros literários e artísticos.
Os gregos, abandonando o empirismo, souberam ir ao encontro das fontes universais de todo o Saber, libertando-se do imaginário e da tutela das magias e das religiões, colocando os problemas no plano da racionalidade e a essa luz procurando soluções e suporte para as suas criações.
É no século V a.C. que este florescimento da Razão se verifica.
Os filósofos meditam sobre o homem e sobre o universo, e nos anfiteatros representam-se as antigas lendas e mitos de fundação, como tragédias ou como comédias.Dos dramaturgos Eurípides será considerado o mais interessante (Walter Benjamin dirá que é ele o fundador da tragédia moderna).
Também nas artes plásticas se verificará um impulso de grande modernidade: racionalismo, clareza na representação,sentido de harmonia e proporção, em suma, um "esforço pelo inteligível, sentido de superação da matéria, poder de observação, gosto pelo concreto, pelo individual, pelo singular" como escreve Maria Helena da Rocha Pereira em Estudos de História da Cultura Clássica, cap.VII,  pags.563  e segs.  ed. Fundação Gulbenkian, 2006.
Como se dizia na antiga Grécia, " o que fazia com que se sentissem gregos não era a raça, mas uma mentalidade, e chamam-se helenos mais os que participam da nossa cultura, do que os que ascendem a uma origem comum".
Algo de parecido com o que nos leva a falar de cultura europeia, ou cultura ocidental, sendo as várias línguas e nações tão diferentes.

É esta mentalidade, esta maneira de olhar o mundo, e dentro do mundo o próprio homem, que levará Platão, na República, a decidir que é sábio expulsar da cidade ideal o poeta, pois o poeta, como visionário que é, perturbaria o sentido do equilíbrio que se deseja na sociedade humana. O poeta, na obra, dá largas à paixão, à emoção, mas na cidade ideal (tirânica, ao fim e ao cabo...) só predominaria a filosofia da razão.

Tuesday, October 14, 2008

Herberto Helder



A Faca Não Corta o Fogo ( súmula e inédita), 2008

No início da década de sessenta todos os jovens liam, melhor devoravam àvidamente, A Colher na Boca, de Herberto Helder . 
Depois seguiram, fiéis, com  tudo o mais que se foi publicando, ao longo dos anos.
Mais do que vasta, a obra é intensa, e de devorada transforma-se em devoradora: de si mesma e dos seus leitores. Os versos têm garras e deixam em sangue o corpo do dizer que constituem e ao mesmo tempo mortalmente ferem.
Neste livro, cuja capa evoca o sopro primordial que poderíamos encontrar num William Blake, Ilda David celebra o fogo que nenhuma faca corta, como se diz no título e na epígrafe escolhida para o conjunto dos inéditos. A chama é puro ouro.
Ah, mas o fogo consome, arde nele uma palavra única, um verbo talvez, uma imagem, de mulher, de animal, ou de fruto ou de flôr (a rosa, sempre a rosa), ouro fundido na treva do coração.
Há corpos, há coisas, há também uma laranja,como no sonho de Descartes tinha havido um melão: fruta redonda, solar, apetecível e que se entrega aberta: energia que tudo vira do avesso, tudo transforma de dentro para fora, ou de fora para dentro.Pois no fim sempre o poeta comerá a laranja, depois de deixar que ela o comesse a ele...

 A laranja, com que força aparece de dentro para fora,
como o ar que se ocupa dela,
o ar ininterrupto,
como ocupa o ar todo,
como interrompe o mundo

Blake deu-nos o Tigre, Herberto dá-nos outro felino não menos mortal: um leopardo louco:

...
E então nenhuma razão me escurece além do crime
da metáfora directa
de um leopardo aluado como uma jóia.E ele levanta
a constelação craniana. A boca avança, límpida
chaga
até ao meu rosto.E neste espelho das coisas de repente
unidas todas, beija-me por mim dentro até
ao coração.
No meio.
Onde se morre do silêncio central
da terra. 

Herberto, directo, terreal, não quer o símbolo primevo de uma força que sempre tentaremos compreender sem nunca o conseguir, está para lá de nós, está para lá do mundo que nos é dado.
Mas pelo artifício da metáfora directa do seu leopardo louco, que também nos seus transes de outrora alguns shamans descreviam, Herberto vai mais longe, mais fundo, no coração da treva, da terra, toda feita silêncio.
 Aí mesmo se morre, no corpo,  no coração do silêncio. 

(Um conselho a quem ache difícil esta leitura: 
ler de Paul Ricoeur La Métaphore Vive). 





 

Saturday, October 4, 2008

O Símbolo: a Pantera de Rilke, o Tigre de Blake




Num pequeno livro de ensaios, Literatura e Alquimia, tive ocasião de dizer, àcerca do símbolo, que é uma "forma impura".
O que acontece nos sonhos acontece na arte, e como escreveu Gaston Bachelard ( L'Air et les Songes, O Ar e os Sonhos) nas imagens reside o segredo do dinamismo psíquico, do impulso que move o criador e que ele mesmo muitas vezes não saberá explicar.
Citando Jung, cuja leitura, em matérias de carácter simbólico é um imperativo cultural:
" A ciência pára nas fronteiras da lógica, mas não a natureza, que floresce onde ainda nenhuma teoria penetrou".
Não está a falar do mundo natural à nossa volta, mas sim da complexa natureza humana que hoje em dia as neuro-ciências investigam, esperando desvendar os mais recônditos e últimos segredos. Vive-se uma nova utopia: a de que o cérebro, o mais perfeito de todos os computadores concebíveis, acabará por ser totalmente mapeado podendo o homem vir a saber com precisão em que zona específica o impulso criador, como outros ( os sentimentos, a emoção, a clara ideia do Belo, como Platão a definiu) afinal se situa, podendo futuramente ser  melhor conhecido (controlado).
Como entender, neste contexto ambíguo, o que é um símbolo?
Fernando Pessoa dizia que para o entendimento dos símbolos se exige do intérprete "que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles:
simpatia (entenda-se empatia, afinidade)
intuição ( por intuição se entende o entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja)
inteligência ( decompõe e reconstrói noutro nível o símbolo)
compreensão (conhecimento de outras matérias, que iluminam o símbolo e o relacionam com outros) por palavras mais simples, refere-se Pessoa a uma cultura geral alargada

A quinta qualidade é de ordem superior, no dizer de Pessoa, algo como a inspiração proveniente do Além, ele alude a um Superior Incógnito, ao Santo Anjo da Guarda, caminhando já para um entendimento metafísico e  místico do símbolo, que não tem necessariamente de existir, a não ser no contexto de uma experiência, mais do que artística, religiosa.

Fiquemos pois com a simpatia, ou empatia, a intuição, a inteligência sensível, analógica (não-racional) e com a compreensão que se fundamenta num espectro cultural mais alargado.
O mais importante nos símbolos é a sua natureza colectiva: isso faz com que actuem durante tanto tempo sobre tanta gente. Como observa Bachelard:
" Os símbolos mais importantes não são individuais mas colectivos na sua natureza e origem", algo que podemos observar na lenda/mito de Fausto, até à elaboração grandiosa do Fausto I e II de Goethe.
Encontram-se nas religiões, antes de se desenvolverem no mundo laico que depois os absorve.
São representações colectivas do nosso imaginário, embora do ponto de vista religioso se definam como inspiração, intervenção de uma sabedoria superior, divina,cujo mistério o homem não penetra.
O termo revelação, se usado, deve ser entendido como algo que provém do sonho, da fantasia criadora e não de um propósito claro e definido.
A representação simbólica é uma manifestação espontânea. 
Jung observa que não há artistas que peguem no pincel ou na caneta e declarem 'agora vou fazer um símbolo'; a forma que aponta para uma intenção consciente é um sinal e não um símbolo.
Eis uma definição que se compreende bem. Diz Jung:
" Um sinal é sempre menos do que a coisa para que aponta, um símbolo é sempre mais do que podemos entender à primera vista...Por isso permanecemos com o símbolo, porque promete mais do que revela".
Belíssimo exemplo de poema carregado de simbolismo, traduzido e comentado por diversos autores, vezes sem conta,  é O TIGRE, de William Blake.
Aqui o deixo na versão magistral de Augusto de Campos, poeta ele mesmo, fundador com o irmão, Haroldo, do movimento de POESIA CONCRETA do Brasil. Assim vemos como a modernidade experimental de Campos à mesma se deslumbrou com o mistério do motivo deste tigre simbólico de Blake:

O Tigre

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna nocturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?

Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar? 
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu esta flama?

Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que côr, que acção?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo, que fornalha
o moldou? que mão, que garra
seu terror mortal amarra?

Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna nocturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?  

 Simplifiquei a ortografia do tradutor, pois neste caso o importante não é o jogo ou alusão caligráfica e sim apenas a discussão do sentido do poema, ou melhor, da imagem simbólica deste tigre, que muitos estudiosos encaram como representação de um Mal  primordial, presente na criação do mundo desde o primeiro momento;  variante, quem sabe se mais feroz ainda, da serpente do Éden, que deu a comer ,com a maçã, o conhecimento que o par primordial adquiriu de si mesmo e do jardim da Vida em seu redor; o poema faz parte da obra intitulada Songs of Experience, de 1794, contraponto das Songs of Innocence, de 1789 em que se inclui o poema the Lamb, o cordeiro; cordeiro e tigre são estudados como pares de opostos, um figurando a inocência, inclusivé de um Cristo redentor, e o outro o Mal absoluto que também, na visão dos teósofos ingleses desse tempo, é parte integrante da natureza de Deus . 

Inspirado pela mesma simbólica animal ( pois é verdade, os poetas têm os seus Bestiários próprios) Rilke dará, no seu poema da Pantera, a imagem do instinto preso nas grades da matéria, que tanto pode ser do corpo como do universo que não se deixa conhecer e nos remete para uma imagem que "morre no coração", num ponto oculto "onde um grande impulso se arrefece" por trás das grades da terra, que não há hipótese de abrir.A dança desta pantera é uma dança da morte, o seu olhar apagou-se, nada ilumina a esvelteza do seu corpo.
A metáfora é directa: nós, humanos, aprisionados no corpo da matéria, somos esse mesmo animal em que o impulso primeiro da criação já não se manifesta.
Feitos de sinais, de imagens e símbolos,  o poema desta Pantera, que perdeu o fogo do Tigre de Blake, representa bem o caminho da experiência da alma que se quis laica, realista, para não dizer mesmo materialista,na aurora do Modernismo. Blake, até natreva e no Mal encontrava a raiz e o sentido; Rilke terá de avançar mais um pouco, até à Elegias de Duíno, para recuperar a dimensão do sublime, ainda que aterrador, com o Anjo que de súbito poderia manifestar-se destruindo o humano, na sua fragilidade essencial.

Friday, October 3, 2008

Cinema Gore


A propósito de cinema gore, um excelente exemplo de autor português, Filipe Melo, com o seu I'll See You In My Dreams, de 2003.
Humor negro, surpreendente e refrescante no panorama quase sempre de melodrama tristonho português. 
Aqui não há lamechice, há a surpresa, o imprevisto jocoso, a ironia distanciada de um verdadeiro criador. Buñuel gostaria deste filme, se o visse. 
O rosto "trabalhado" pela maquillagem não é do realizador.

Tuesday, September 30, 2008

O Corpo Humano



Até ao momento em que as neurociências vieram acrescentar métodos e novas capacidades de visualização do corpo humano, o corpo humano era imaginado e apresentado aos estudiosos das formas mais variadas e interessantes, quando consideradas do ponto de vista simbólico, místico e psicológico.
Desde os desenhos das visões da monja Hildegarda de Bingen, na Alemanha do século XII, até aos desenhos do teósofo J.G. Gichtel, que teve ainda maior influência no século XVII (já a tipografia permitia reproduções que circulavam melhor do que os antigos manuscritos iluminados), o processo de visualização (entendimento) do corpo humano não deixou nunca de interessar o mundo.
Gichtel publica em 1696 a sua Theosophia Practica, que será reeditada em 1736  e modernamente retomada pela primeira vez em edição francesa, em 1973.
Nesta roda do mundo, da primeira gravura que ornamenta o livro, explica o autor a sua doutrina: com a roda do mundo se exprime a imagem de Deus no homem, de acordo com os três princípios, a saber do corpo, espírito e alma, todos emanando do centro divino de Deus que se manifestou no mundo e no homem, por sua vez colocado, também ele, no coração do universo criado.
A linguagem é própria de um misticismo confuso, eivado de um pouco de tudo: cristianismo, cabalismo, alquimia da transmutação da alma.
Não nos interessa aqui a linguagem explanatória, mas apenas a imagem que pretende que visualisemos sem preconceitos:
" Imagina isto de um modo vivo na tua alma; compreenderás mais facilmente as figuras, pois a compreensão é interior". 
Faz-se apelo à intuição e sensibilidade, à capacidade imediata de entender por outra via que não a da razão. Assim, noutros tempos como nos de agora, se transmitia cultura, pedindo uma aceitação imediata, sem que a Razão interviesse. 

Os surrealistas não farão melhor, na sua teoria e nas suas práticas, embora com os tempos se mudasse de forma radical o imaginário do corpo. Basta chegar a Picasso e aos cubistas em geral.
Gichtel, no século XVII quer apresentar, ou representar a imagem do Homem Perfeito, renascido em Deus, como nos explica.
Os modernos e modernistas não têm tal pretenção: querem uma realidade humana objectivada, ainda que de modo intuitivo, subjectivo, na sua directa e simples humanidade, sem mancha de misticismo. O mundo laicizou-se e com essa laicização do imaginário já não se pretende difundir a imagem de um corpo místico possível, caso o habitante desse corpo procurasse a redenção (através do entendimento da essencia da divindade e do homem como parte dela).

Mas agora como outrora o artista sente que lhe será difícil explicar com objectividade o impulso que o levou a esta ou aquela criação. Gichtel afirma, com modéstia:
 " o leitor perceberá que tenho de me servir  de similitudes naturais" ou seja, que só por metáforas se poderá explicar o que lhe nasce do fundo da alma.
A metáfora será um dos segredos do acto criador: é a metáfora que o explica e nunca um qualquer raciocínio, por mais elaborado que pareça.
Na realidade o mundo do simbólico na arte ( na cultura) só por aproximação e nunca directamente, pode ser entendido.
Esta é uma das discussões a fazer, ainda hoje em dia.

II
Erwin Panofsky (Meaning in the Visual Arts,Penguin Books) dá-nos um quadro sinóptico extremamente útil para aquilo que se pretende: identificar e interpretar as matérias artísticas ou culturais de que nos ocupamos. Seja qual for a esfera em que nos movamos, tudo dependerá "do nosso equipamento subjectivo, que terá por isso de ser acresentado e corrigido pelo conhecimento dos processos históricos, cuja soma total se pode chamar de tradição" (p.67). 
Assim, no quadro, as divisões caracterizam:
1. as matérias primárias de interpretação, focando em primeiro lugar os motivos, factuais ou recreados, sendo essa a primeira base do reconhecimento para interpretação.
2. as matérias secundárias ou convencionais, constituindo o mundo das imagens, estórias e alegorias.
3. o sentido intrínseco , ou conteúdo, constituindo o mundo dos valores simbólicos.

Quanto ao "equipamento" ( os conhecimentos necessários) para a interpretação, também o autor os ordena, do seguinte modo:
1. experiência prática, ou seja, familiaridade com os objectos e os acontecimentos
2. conhecimento das fontes literárias e artísticas (  os temas e conceitos específicos).
3. intuição sintética (familiaridade com as tendências essenciais do espírito humano, condicionados pela psicologia pessoal e weltanschauung).

Deste modo, com o conhecimento acumulado e pelo convívio habitual com as matérias que se desejem estudar se chegará ao entendimento do que Panofsky chama de sintomas culturais ou símbolos em geral, percepção das tendencias essenciais do espírito humano através da manifestação de determinados temas e conceitos.

Este método de trabalho, que pode parecer disperso ou fragmentado, permite na realidade um entendimento globalizador dos processos da criação literária, artística, cultural na sociedade humana à medida que vai, histórica e socialmente, evoluindo.
 








Saturday, September 20, 2008

Ceci n'est pas une pipe


O título provocador do quadro com o cachimbo, e a legenda com a afirmação de que aquilo não é um cachimbo, colocou a base mesma da discussão da representação na arte.
Uma imagem não é uma realidade, é uma representação da realidade com tudo o que isso encerra de idealização (ainda que realista) deformação, reinvenção, ampliação metafórica ou simbólica de sentido.
Ainda que aparentemente fiel ao objecto real, neste caso o cachimbo, nada há de verdadeiramente comum entre eles: o cachimbo da imagem não pode ser fumado, é dada a ver uma imagem, não a sua realidade. 
Real, só o objecto em si mesmo.
Assim, de forma simples, mas carregada de ironia subtil, Magritte, de novo ele, coloca a questão da definição do conceito, no coração da arte. E introduz igualmente o que os teóricos definem como desconstrução: ao desconstruir a ilusão do real, remetendo a imagem para o que ela é, imagem, representação,ampliam o sentido do que na cultura visual deve ser discutido: 
o sentido complexo tem de ser desenvolvido através de vários filtros de interpretação que permitam uma mais sofisticada reflexão e análise; sem contudo perder a "marca" do artista, pois a criação é sempre um statement , uma afirmação pessoal, ainda que em contexto cultural ampliado, e com estilo próprio, pessoal.
É o estilo que define o artista.



Friday, September 19, 2008

Da Publicidade à Arte e vice-versa



René Magritte, o pintor que não queria ser apelidado de surrealista, nem de metafísico, nem de fosse o que fosse que o identificasse com algo que não ele próprio, tem uma obra que desafia o nosso imaginário e o seu cunho de realismo onírico (aparentado às imagens dos sonhos) pede interpretação.
É vulgar dizer-se que há marcas da sua obra na publicidade-arte, e na pop-arte que surgiu anos mais tarde, e em que o realismo, o fantástico e o imaginário surrealista se fazem ver e sentir.
Pode traçar-se um caminho da publicidade à arte e da arte aos conceitos, na obra de Magritte, como se faz num dos capítulos das ed. Taschen da sua obra.
Mas é preciso não esquecer que este artista é sobretudo pintor, faz publicidade para ganhar a vida, e pelo facto de ser um artista de ambiguidade complexa leva à publicidade, para além dos efeitos indispensáveis  da comunicação e marketing, um efeito de sublimação que só a arte permite. 
O que a publicidade obtém, com Magritte e não só, é um ganho suplementar de influência sub-liminal, que os surrealistas conheciam bem (tendo assimilado Freud ) tanto no domínio da linguagem verbal como no domínio da imagem : as imagens transportam ideias, as imagens não são neutras, carregam o seu próprio significado, aparente ou oculto. 
No caso de Magritte um duplo jogo de aparência e ocultação que faz do seu trabalho um aliciante exercício seduzindo quem o contempla. 

Andy Warhol e Roy Lichenstein, entre outros criadores  da escola de Nova Yorque, ampliam a discussão, propondo um novo olhar do real objectivo  com as técnicas que em princípio se aplicavam na fotografia e na publicidade: alargou-se o conceito de arte, com eles, para sempre, se é que para sempre é um termo adequado em arte.

Magritte negou ter influenciado ou desejado ser seguido por estes novos expoentes, que desdenhava por serem casos de fashion, passageira moda bem longe do que ele entendia ser a criação poética, artística : "sentimento do real no que contém de permanente".
Ora nada há de menos permanente do que a moda, ou os seus efeitos, e a publicidade, como conceito permite esta discussão: marca o momento, a atracção do momento, o sucesso do momento, mas só ultrapassando o momento e ganhando outro estatuto se poderá chamar de arte.
Já para não falar do objectivo que em cada domínio o artista se propõe: na arte em primeiro lugar a satisfação íntima, pessoal; na publicidade o aumento de vendas.

Havendo, como em tudo, algumas excepções: Salvador Dali comentava que o anagrama do seu nome era avida dollars...

Thursday, September 18, 2008

Nicholas Mirzoeff


Com o título de An Introduction to Visual Culture, ed Routledge, 1999 (com reedições sucessivas em 2000, 2001, 2003, 2004 e 2006) procura este autor, dos mais citados  nas bibliografias  dos estudos de cultura visual, dar aos estudiosos um panorama completo, na medida do possível, das áreas que o conceito abrange.
De facto é multidisciplinar a área da cultura visual, atravessa variados domínios, artísticos, científicos e tecnológicos (estes cada vez mais, com as novas tecnologias de produção e divulgação no cinema, na televisão, na net).
Se para nós é importante parar um pouco que seja no conceito de cultura- pois de cultura, ainda que visual se trata, para todos será importante entender o que é a dimensão visual que a cultura atinge e a influência que ao longo dos tempo a sua produção atinge.
Numa sociedade mais jovem, como a americana em relação a outras, talvez o peso da história de arte se revele menor, ou menos influente,  nos laços de transversalidade que se possam estabelecer, ou adivinhar.
Mirzoeff começa pois por discutir o que é a cultura visual, definindo o que é 
 visualizar
 o poder visual e o prazer visual
a visualidade (  capacidade que o objecto em causa tem de se dar a ver , e não é o mesmo do que ser ou não visto)
e finalmente
cultura
e vida quotidiana

Estas são considerações introdutórias, mas podemos discutir se não teria sido desde logo melhor avançar pelo que se entende por cultura, arte e vida quotidiana, na medida em que hoje todos vivemos em ambiente de cultura ou de aculturação visual: desde os jornais e revistas que se abrem, aos anúncios que ocupam transportes e espaços públicos, televisões, etc. 
Mas é certo que este tipo de cultura visual pouco pode ter a ver com arte propriamente dita: outra distinção importante a fazer.
O que é arte, o que é cultura, no domínio complexo da cultura visual.
A reflexão conduz ao conceito de imagem.
Há pensamentos-imagem, como há na literatura imagens-pensamento: estão na base da produção poética, mais realista e descritiva, ou mais surrealista ou abstracta, tal e qual como se pode dizer das obras de arte da pintura ou da escultura.

Voltando ao nosso autor, ele na Parte Um, cap.1, abre com a VISUALIDADE, e a Definição da Imagem: linha,côr, visão; preocupa-se com temas que são caros ao desenho e à pintura: perspectivas, disciplina, côr ( eu diria ordem, ou ordenação como referiu Escher) luz, etc.
Já no cap. 2 transita para a  A idade da fotografia (1839-1982): trazendo à nossa reflexão se tal trouxe a morte da pintura,
se fez nascer aquilo que chama de imagem democrática,
a que se segue, no fim,  a morte da fotografia.

Os temas ligados à fotografia, seja como documento de vida, social, política, de guerra (veja-se a obra de Robert Capa, que morre na Indochina) seja como forma de arte (vejam-se as fotografias de Jorge Molder, a série de autoretratos) passam em regra para segundo plano porque entra em cena  arte cinematográfica que permite, com mais dinamismo, fixar o quotidiano, os grandes temas, de paz ou de guerra, e em absoluto desenvolver o imaginário de um mundo de ficção que se torna muito apetecível.
Entra duas guerras mundiais a oferta do prazer, mais do que do poder ou da informação da imagem, é a grande tentação que vai revolucionar também os outros domínios: teatro, música, dança, nada voltará a ser o que era. 

No cap. 3 o autor ocupa-se de temas como o da virtualidade que se torna global, uma virtualidade que pode substituir-se (com risco) à vida real e quotidiana, a vida na net que já hoje preocupa sociólogos e pedagogos, e corpos virtuais, como a criação da second life já tornou manifesta, a seguir aos joso de computador em que víamos uma Lara Croft desenhada a partir de uma actriz de cinema de grande beleza e sucesso.

Na Parte Dois da obra abre-se uma discussão de carácter antropológico, focando a importância dos rituais nas tribus primitivas, o valor e e peso da memória cultural, tendo mostrado alguma experiência de colonizadores que ao apagar-se a memória cultural se neutraliza uma civilização. 
Esta segunda parte é relativa à CULTURA, depois de na primeira se ter focado muito a Visualidade.
Podemos alargar a discussão ao entendimento das culturas primitivas ( na idade da pedra os registos de animais convocando o sucesso na caça, na pesca, ou as cavernas onde a deusa da terra tinha o seu culto e recebia sacrifícios e oferendas) etc; 

Os capítulos finais introduzem vários outros temas, como  o tema do sexo na cultura visual: impossível escapar  à sexualização da vida, da arte, da cultura, do quotidiano real nos seus múltiplos aspectos; o tema dos géneros, das raças, e de um imaginário fantástico que se ocupa do mundo extra-terrestre, dos impérios (do bem e do al), dos perigos presentes e passados, da nva televisão que tudo vê tudo mostra: na Parte Três, sobre o
  GLOBAL/LOCAL
o que o autor oferece à discussão é a morte da Princesa Diana.
Com a transmissão de tudo o que aconteceu, desde o acidente até ao enterro e à investigação policial, entende o autor que se inaugurou de facto a Cultura Visual Global.
Mas nós tivemos também no nosso país um case-study inultrapassável: o caso Maddie, no Algarve, que atingiu dimensão planetária.

Wednesday, September 17, 2008

A força da imagem

Diz-se, e há que concordar, que uma imagem vale mais do que mil palavras.
O artista conhece bem o impulso que o move a produzi-las. Mas muitos outros se apoderam hoje em dia dessa força que age directamente sobre o sub e o inconsciente da pessoa, imprimindo no cérebro de forma indelével, ou quase, o desenho e a energia que a constitui.
No princípio da televisão e da publicidade falava-se em proibir imagens ditas subliminais: precisamente as que ficavam impressas, influenciando sem que a pessoa o soubesse, os seus desejos, apetites, comportamentos, individuais e sociais. 
Com o que se conhece do avanço das ciências neuro-biológicas nos nossos dias voltou a abrir-se esta questão, do poder e da influência da imagem, do seu bom ou mau uso que, seja qual for o caso, nos coloca a questão da ética da cultura visual e sua produção e promoção descuidada. 
Não se tratará de fazer censura, mas sim de abrir um debate sério: o que hoje toca apenas a alguns, na sociedade, pode muito rapidamente vir a tocar a todos em rápido descontrole. 
Há sempre uma dimensão social na arte: ela é produto de um tempo, de uma pessoa nesse tempo, que teve uma educação e não outra, adquiriu certos conhecimentos e não outros, certas sensibilidades e não outras  e por aí adiante.
A menos que viva em autoexclusão -e mesmo entre os monges budistas tal é difícil-o artista vive, produz, divulga em ambiente social, que pode aceitar ou rejeitar a sua obra,mas tanto a aceitação como a rejeição se baseiam em factores culturais, logo sociais, de reacção. 
Tudo é visual na cultura produzida hoje em dia. E tudo é social, na dimensão que adquire: desde o anúncio mais banal, à telenovela ou ao filme de sucesso como aos grandes concertos mediáticos como o de Madonna, recentemente.
A influência alarga-se a todos os domínios do consumo: hábitos e comportamentos (droga, bebida ) vestuário de marca, de preferência até criado pelos artistas que o promovem. 
Do grande sistema de estrelato (Starsystem) promovido nos EUA nas décadas do grande cinema dos anos 40-50-60  se passou rapidamente para a era dos modelos, dos músicos e cantores (estamos a evocar os Beattles, os Rollingstones, e até os Xutos e Pontapés... ) e agora dos futebolistas. Figo é um bom exemplo português.
Também, ou sobretudo os políticos, utilizam com proveito o poder da imagem: comícios, intervenções frequentes nos media, cultivo de uma aparência que deseja ter impacto: pela elegância, ou pela descontracção (abolição da gravata, por ex. nos deputados de esquerda).
Nada foge ao poder da imagem: assistimos em directo ao ataque das Torres de Nova Yorque, assistimos em directo ao grande arranque da guerra do Iraque, à queda de Saddam e até ao seu enforcamento. 
Em directo se assistiu à agonia do Papa João Paulo II.
São grandes os problemas de ética que tanta informação mediatizada levanta às consciências modernas.
É útil ver a deshumanização do mundo? Serve que propósitos, serve a quem?
Mas será melhor ocultar?
Pela imagem se constrói, pela imagem se destrói (ver as caricaturas que os comediantes fazem dos políticos).
Está aberta a discussão.

Ilustração e Cultura: Lima de Freitas


Uma obra como a de Camões não poderia deixar de inspirar os nossos grandes pintores.
Lima de Freitas foi um dos que se entregou à obra monumental de ilustrar alguns dos mais belos momentos desse clássico.
No soneto CXIII da edição da lírica completa desabafa o poeta contra o infortúnio da sua vida que só lhe consentiu desgosto e desfavor, como se ele somente à morte tivesse algum direito.
Lima de Freitas trata o tema com uma força e intensidade que nada deixam a desejar ao que foram as exclamações do poeta: sentado em meditação no interior de uma enorme caveira, tem apenas a seu lado a esfinge, o animal mítico que guarda os segredos da existência, não os revelando mas antes enchendo de temor a quem a contemple. 
Conhecemos de Durer, a caveira evocadora da morte que a todos espera, no retrato de S.Jerónimo, para não falar da célebre tragédia de Shakespeare, Hamlet onde também ele reflecte sobre o dramático destino do homem, colhido entre a existência, a vida, que pode não merecer, e o fim que a todos aniquila.
Contemporâneo da grandeza de Durer, Camões na sua lírica exprime bem o mal da alma, a dôr do sofrimento de uma existência rica de experiência mas excessiva de abandono e perda, a começar desde logo pela corte e pelo rei que o ignorarão perdido nas ruas de Lisboa, entregue apenas aos cuidados do seu escravo Jau.
Eis o soneto que Lima de Freitas ilustrou:

Que poderei do mundo já querer,
Pois no momento em que pus tamanho amor,
Não vi senão desgosto e desfavor,
E morte enfim, que mais não pode ser!

Pois me não farta a vida de viver,
Pois já sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que que mágoa dê maior,
Eu a verei ,que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou
De quanto mal me vinha; já perdi
O que a perder só ela me ensinou.

Na vida desamor somente vi,
Na morte a grande dor que me ficou.
Parece que para isto só nasci!


Metido numa caveira que ainda não é sepulcro mas é noite da alma, face à temível esfinge: cabeça e peito de mulher, asas de ave de rapina, corpo de dragão, patas e garras de leão, quão pequeno fica o homem, que diminuído o seu poder, que assustadora a sua natureza, a sua sonhada grandeza completamente anulada. Mestre Lima de Freitas buscou nas imagens pensamento de que falava Escher o enquadramento ideal para a tortura de Camões.