Wednesday, November 26, 2008

As Meninas



Pelas mãos de Paula Rego e de Agustina Bessa-Luís, uma pequena obra-prima, de pintura e de prosa, entre o comentário e a ficção  a que a pintura de Paula incita. Por um lado tudo é memória, quase biografia, se não fosse que a Arte da Pintura transforma tudo aquilo em que toca. E se não fosse que também a Escrita de Agustina é transformadora, modeladora de um real que ela não vive sem apelar ao que nela também foi, ou é, memória transmutada. Observa Agustina que 
" A obra de Paula é autobiográfica, mas é sobretudo assustadora.Ela é assustadora. Mas porquê? Há alguma coisa de inquietante no que se distingue do normal, do admitido como tal. Artista Associada da National Gallery, em Londres, tem direito a um atelier no edifício do museu e a um salário. Isto talvez a moleste, sente-se um cão acorrentado (...) As histórias mais aterradoras são inspiradas por uma noção de imensidão. Nos contos de Poe há essa ideia, flutuante e dinâmica, de qualquer coisa que é desmedida e inexpugnável".
Mas o mais interessante, nas observações de Agustina, é a comparação que faz do Desenho de Paula com a Escrita (as Maiúsculas são minhas).
" O desenho de Paula é uma escrita. Paciente, determinada, barroca e condescendente ao mesmo tempo. É uma escrita que se aprende na solidão, que pede a aprovação desse mago inteiror que se chama arte. Onde nasce a arte? Que caminhos percorreu até chegar a essa hábil construção sobre os abismos do nada, colhendo de passagem as formas, as variações, as presenças ? Já estava pronta nas grutas de Lascaux e nas abóbadas de Altamira. Não era uma tribu quem pintou aqueles bisontes e gazelas. Era alguém dotado, que se escondia no negror da caverna para pintar, levando com ele uma lâmpada de óleo e sujando os dedos de fuligem e de sangue para desenhar o que vira num relance, quase só um vislumbrar agudo da realidade. A realidade  era a sua obra e não o que acontecia à luz da manhã, quando as feras voltam da caçada indo beber aos lagos e deixando na areia remota a marca da garra vermelha, pesada e ainda fumegante de morte.
O desenho é uma pronúncia, como a da fala. Onde nascemos, que influência tiveram em nós as primeiras vozes que ouvimos, as corruptelas, o som e a intenção que ele transmite, se de agressão ou carinho, tudo aparece no desenho da escrita (...) A fala é igualmente feita pelos hábitos da infância (...) o desenho, como a fala, traduz essa experiência inocente da primeira idade".

Acrescento agora eu que pelos caminhos da vida a inocência se perde e, na pintura como na prosa destas duas admiráveis artistas do nosso século XX, a grande lição é a da lucidez que se adquire: vivendo, em primeiro lugar, a plenitude do real, ainda que imperfeito; e guardando a memória do que foram as primeiras e únicas Iluminações de um passado ora presente ora distante.

1 comment:

Anita's said...

Se algumas meninas não fossem pintoras talentosas ou escritoras igualmente talentyosas, teriam dado, por certo em assassinas. :-)

Obrigada pelo post.


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