Tuesday, October 14, 2008

Herberto Helder



A Faca Não Corta o Fogo ( súmula e inédita), 2008

No início da década de sessenta todos os jovens liam, melhor devoravam àvidamente, A Colher na Boca, de Herberto Helder . 
Depois seguiram, fiéis, com  tudo o mais que se foi publicando, ao longo dos anos.
Mais do que vasta, a obra é intensa, e de devorada transforma-se em devoradora: de si mesma e dos seus leitores. Os versos têm garras e deixam em sangue o corpo do dizer que constituem e ao mesmo tempo mortalmente ferem.
Neste livro, cuja capa evoca o sopro primordial que poderíamos encontrar num William Blake, Ilda David celebra o fogo que nenhuma faca corta, como se diz no título e na epígrafe escolhida para o conjunto dos inéditos. A chama é puro ouro.
Ah, mas o fogo consome, arde nele uma palavra única, um verbo talvez, uma imagem, de mulher, de animal, ou de fruto ou de flôr (a rosa, sempre a rosa), ouro fundido na treva do coração.
Há corpos, há coisas, há também uma laranja,como no sonho de Descartes tinha havido um melão: fruta redonda, solar, apetecível e que se entrega aberta: energia que tudo vira do avesso, tudo transforma de dentro para fora, ou de fora para dentro.Pois no fim sempre o poeta comerá a laranja, depois de deixar que ela o comesse a ele...

 A laranja, com que força aparece de dentro para fora,
como o ar que se ocupa dela,
o ar ininterrupto,
como ocupa o ar todo,
como interrompe o mundo

Blake deu-nos o Tigre, Herberto dá-nos outro felino não menos mortal: um leopardo louco:

...
E então nenhuma razão me escurece além do crime
da metáfora directa
de um leopardo aluado como uma jóia.E ele levanta
a constelação craniana. A boca avança, límpida
chaga
até ao meu rosto.E neste espelho das coisas de repente
unidas todas, beija-me por mim dentro até
ao coração.
No meio.
Onde se morre do silêncio central
da terra. 

Herberto, directo, terreal, não quer o símbolo primevo de uma força que sempre tentaremos compreender sem nunca o conseguir, está para lá de nós, está para lá do mundo que nos é dado.
Mas pelo artifício da metáfora directa do seu leopardo louco, que também nos seus transes de outrora alguns shamans descreviam, Herberto vai mais longe, mais fundo, no coração da treva, da terra, toda feita silêncio.
 Aí mesmo se morre, no corpo,  no coração do silêncio. 

(Um conselho a quem ache difícil esta leitura: 
ler de Paul Ricoeur La Métaphore Vive). 





 

1 comment:

Mapas De Espelho ( Imagem Suzzan Blac) said...

Essa esmagadora capacidade de falar dos versos. Lembrei da afinidade com Celan. Vale.