Friday, October 24, 2008

Cultura e Culturas

Desde que há humanidade que há a manifestação de uma cultura própria, evoluindo desde os primórdios da civilização até aos nossos dias. Só o homem pode criar cultura, ser sujeito e objecto dela, pois só o homem tem capacidade de simbolizar, de criar mitos, de marcar e memorizar a evolução com os seus cortes próprios de mudança. 
1.
As culturas arcaicas, primitivas, nómadas, de que as cenas de caça nas cavernas do paleolítico e do neolítico deixam testemunho, ex. de Foz Côa, entre nós, Altamira em Espanha, entre outras, noutros espaços ainda, como em França e que gradualmente têm sido descobertos e estudados. 
 São Formas Incipientes, propiciatórias de bons auspícios na caça,  o produto de um imaginário marcado pela magia chamânica, visionária, elevando-se em transe a um além que é ainda uma forma intuitiva do mundo natural a que se sente íntima ligação.
O homem não tem ainda consciência nítida do que o separa da natureza em redor, identifica-se com ela, com os seus elementos, que diviniza, e procura conciliar de vários modos.
O culto religioso que se desenvolve é de natureza matriarcal, celebra-se a Deusa-Mãe, em diversos pontos do globo, de modo muito semelhante: cultos em cavernas, em florestas, com sacrifícios humanos, rituais, em que o amante da deusa é iniciado,  imolado,  depois de castrado. São rituais sanguinários, em que a imolação é suposta garantir uma forma de eternidade.
O ex. mais citado é o culto da deusa Cybele,e do seu amante Attis.
Uma fonte útil será a HISTÓRIA DAS RELIGIÕES de Mircea Eliade.
2.
O melhor testemunho da passagem do matriarcado ancestral, pagão, para uma forma de patriarcado monoteísta é a que se encontra no Antigo Testamento, com o deus Jeová, a sua criação do mundo e criação do homem, andrógino, na primeira versão do Génesis 1, quando se diz que criou o homem à sua imagem e semelhança, homem e mulher o criou.
Um eco semelhante se encontra em Platão, no BANQUETE, na descrição do mito do Andrógino, quando descreve os seres existente, circulares, completos, macho e fêmea, castigados pela ousadia de se identificarem aos deuses:  são cortados ao meio e daí resulta a busca, que o impulso amoroso representa, de se completarem uns aos outros, unindo as metades separadas. 
Mas na cultura e sociedade dos gregos  havia outras formas: só masculinas e justificam o desejo homossexual; e femininas, justificando o desejo lésbico. Tudo foram representações de um imaginário que procurava entender e justificar a variedade dos comportamentos sexuais.
3.
Na épica de GILGAMESH , inscrita nas tabuínhas cuneiformes, temos uma recolha de várias tradições ancestrais do culto do Feminino, e da imagem da importância  civilizatória dos cultos da prostituição sagrada, como forma de iniciação a um estado superior, mais requintado, de experiencia social.
Mas noutros cultos, igualmente antigos,como o hindú, o lado feminino é visto como um lado de treva, ligado à morte, ainda que ritual . O sacrifício pelo sangue é suposto conceder uma espécie de vida dupla, terreal e divina, fecundidade, prosperidade, a quem o pratica: sacerdotes que são na verdade os condutores das decisões dos reis, tal como se verifica noutras civilizações: dos Maias, por exemplo.
4.
Ainda na mesa tradição do Antigo Testamento há a memória de sacrifícios humanos, mas já em transição: Jeová pede inicialmente a Abraão que sacrifique o seu filho, como sinal de obediência plena, mas no momento em que isso vai acontecer o filho é substituído por um animal, um cordeiro, que será sacrificado em seu lugar.
Este é um ponto marcante na evolução do ser humano e sua relação com a vida e o respeito por ela. Os animais serão as vítimas votivas, e já não os humanos como até então.
Também no Antigo Testamento se verifica uma mudança civilizacional: de um matriarcado primitivo, algo selvagem, se passou para um patriarcado de modelo social mais regularizado, com normas de comportamento ( e de castigo) , como os Dez Mandamentos, e todo um conjunto de leis e de regras de higiene, que ainda hoje se mantêm, como as regras do culto islâmico, com os seus jejuns e proibições de comer carne de porco, entre outras.
5.
De todas estas formas de civilização, no seu progresso gradual, nos ficaram testemunhos; em desenhos gravados na pedra, em escritas primeiras, como a cuneiforme, os hieroglifos egípcios, ou a escrita dos Maias,  e outras mais antigas, ainda por decifrar.
Para não falar dos idiogramas chineses que, não sendo tão figurativos como os hieroglifos, estilizados, são contudo imagem e representação conceptual em simultâneo ( e daí a dificuldade para os ocidentais de traduzir bem o chinês, sobretudo o Pequinense, que tem mais de 7000 caracteres-base).
A escrita chinesa, como imagem artística e representação filosófica, poética, em simultâneo, tem inspirado muitos dos artistas modernos que pela sua contemplação chegaram a um modo próprio de pintar,como é o caso de Henri Michaux, ou entre nós Ana Hatherly.
6.
A Antiguidade Clássica (greco-romana) foi o grande caldo de cultura em que se formou a chamada cultura ocidental, juntamente com o Cristianismo posterior, que veio humanizar a religião dos povos pagãos e  judeus. Pois até ao momento da iniciação cristã a noção de que o homem deve amar o próximo como a si mesmo, com tudo o que esta noção implica, não existia. O Cristianismo traz um novo olhar sobre o outro, a relação com o mesmo, que somos nós, e a relação com um Deus Criador que pela oferta do seu filho redime os pecados de uma humanidade que já tinha sido ameaçada de destruição mais do que uma vez: com o Dilúvio, com os castigos de Babilónia e a orgulhosa Torre de Babel,  Sodoma e Gomorra, e outros episódios, cuja dimensão simbólica é estudada por Paul Diel, em LE SYMBOLISME DANS LA BIBLE.
Ainda neste contexto não podemos esquecer a importância dos mitos e da mitologia grega, bem sublinhados na obra de Walter Burkert, MITO E MITOLOGIA, em tradução, como sempre magistral,de Maria Helena da Rocha Pereira.
De HOMERO só se conservou, ao lado da ILÍADA, a ODISSEIA, em vários aspectos comparável às aventuras do Gilgamesh mesopotâmico.É uma história de aventuras e de regresso a casa, tendo pelo meio uma sucessão de narrativas , "autónomas", como diz Burkert,  inseridas para consolidar memórias de lendas mais antigas, do passado:
o Cíclope antropófago, a coragem e a manha de ULISSES, que o cega, e consegue fugir da caverna com os seus companheiros,a história de Circe, a feiticeira que transforma os visitantes em porcos, ou a fuga às temíveis Sereias que encantam e fazem naufragar os navios com os seus marinheiros- tudo se manterá no imaginário ocidental, transitando para lendas e contos populares de todo o  mundo, em cuja matriz se reconhece boa parte destes mitos.
A bravura de Ulisses, o seu engenho, demonstram a alta opinião que os gregos antigos tinham de si mesmos, projectando a imagem de um povo civilizado exemplar- sendo que os outro seriam "bárbaros"  a necessitar de uma outra educação.
Resumindo, com Burkert:
" Explorar o mito em geral, a partir das categorias de Freud, foi o que empreendeu fazer C.G. Jung.Que os mitos eram sonhos colectivos, tinham-no já afirmado outros discípulos de Freud". A tese é alargada por meio da teoria dos Arquétipos do Inconsciente colectivo, funcionando como memória social, oculta, portadora de sentidos diversos, que em dado momento e circunstância se poderiam objectivar nesse tipo de narrativas míticas.
Regido por "uma lógica oculta", o Espírito manifesta-se, através das suas criações mais bizarras.Não se esgotará por isso nunca, por muitas teorizações que se façam, "o variegado e profundo conteúdo dos mitos" (Burkert, p. 36).

É na Iconografia da Idade-Média e do Renascimento, bem como em muita estatuária, que se conservará a memória desta passado antigo, com suas lendas e mitos.
De origem fundamentalmente religiosa, mesmo quando se ocupa dos temas mitológicos pagãos, só pouco a pouco cede o lugar à descrição e apresentação do novo mundo, de uma burguesia ascendente, de que o Retrato será o testemunho cultural mais importante; retratos e interiores, naturezas mortas com abundância de caça, peixe, frutas, mostram como é dentro de casa que se vive, e já não nos Ágoras abertos dos gregos ou dos romanos. 
Agora os Palácios, a corte, ou as casas, da burguesia ascendente, eram os espaços onde uma nova cultura se produzia.Evolui-se de uma ligação religiosa primária ao mundo natural (regido pelos ciclos das estações e cultos que o acompanhavam) para um mundo laicizado, secularizado, regido por normas sociais hierarquizadas, é certo, mas tendo por fim a ordem própria das várias esferas do povo, do clero e da nobreza., bem definidas, até ao ponto de ser legislado o vestuário que cada classe poderia usar.
Pairando acima  houve o império do Papa, no Vaticano, enquanto se discutia a origem divina di poder do Rei, algo qu culminará nera dos Absolutismos dos séculos XVII e XVIII até que a Revolução Francesa lhes ponha termo, tal como já no século XVII Cromwell o tinha feito com a Coroa Inglesa, mandando decapitar o rei.
7.
A verdadeira revolução cultural dá-se com o Humanismo e  o Renascimento de que figuras como Erasmo de Roterdão, Thomas More e a sua UTOPIA, e outros pensadores como Reuchlin, que traduz a Kabala judaica, Pico della Mirandola, que escreve o Discurso sobre a Dignidade do Homem e outros, pintores como da Vinci, escultores como Miguel Ângelo, cientistas como John Dee na corte de Isabel I, anunciando tudo isto o que vai ser a grande aventura dos mares, das Descobertas Marítimas, que verdadeiramente modificaram tudo o que se julgava saber sobre o mundo:
a terra não era plana, era redonda,
 o sol não andava à roda da terra, era o contrário,
e existiam tantos e diferentes povos e civilizações, como os do Brasil, os da China e do Japão, descritos estes por Fernão Mendes Pinto,na sua PEREGRINAÇÃO, com uma tal capacidade genial de dar a ver, que o livro se tornou best-seller no seu tempo.
8.
A descoberta da DIFERENÇA foi o que permitiu abrir caminho para outras formas de ver e entender o mundo, tanto como o homem.
Abriu-se caminho para um individualismo maior, uma independência que já LUTERO, com a sus REFORMA, na Alemanha do século XVI, proclamara. Independência das normas e dogmas impostos pelo Papado, valorização da consciência e independência  individuais nos domínios da religião e da moral.
Esta nova ideia de que o homem, ser autónomo, dotado de razão própria, capaz da escolha própria do seu destino, é uma ideia que irá modificar o modo como a sociedade e o mundo são vistos e serão representados, daí em diante.
É nesta altura que se forma o modelo do que hoje chamamos de época moderna.
Aí , e sobretudo no século XVIII, teremos a matriz das ideias que ainda hoje nos regem.




Friday, October 17, 2008

A racionalidade grega


Citações de Heraclito (dos Fragmentos):

27. O que aguarda os homens depois da morte não é nem o que eles esperam nem aquilo em que crêem.
41. A sabedoria consiste numa única coisa,conhecer o pensamento que governa tudo em todo o lado.
43. Não  podemos encontrar os limites da alma, por mais caminhos que sigamos, de tal modo estão tão profundamente enterrados.
49. Descemos e não descemos o mesmo rio; somos e não somos.
54. A harmonia invisível vale mais do que a visível.
55. Prefiro tudo o que se possa ver, ouvir e aprender. 
81. O que existe em nós é sempre uno e o mesmo:vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice; pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente.
91. Não se desce duas vezes o mesmo rio.
101. Eu procurei-me a mim mesmo.
101@. Os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos.
109. Mais vale esconder a ignorância.
112. O pensamento é a mais alta virtude.
113. O pensamento é comum a todos.
116. A todos os homens é dado conhecerem-se a si próprios e fazer prova de sabedoria.
119. Para cada homem o seu carácter é o seu daimon.

O "milagre grego", nos primórdios do pensamento ( da descoberta da Razão)deu aos humanos os princípios essenciais da sua actividade nos variados domínios da filosofia, da história, das ciências, bem como da variedade dos géneros literários e artísticos.
Os gregos, abandonando o empirismo, souberam ir ao encontro das fontes universais de todo o Saber, libertando-se do imaginário e da tutela das magias e das religiões, colocando os problemas no plano da racionalidade e a essa luz procurando soluções e suporte para as suas criações.
É no século V a.C. que este florescimento da Razão se verifica.
Os filósofos meditam sobre o homem e sobre o universo, e nos anfiteatros representam-se as antigas lendas e mitos de fundação, como tragédias ou como comédias.Dos dramaturgos Eurípides será considerado o mais interessante (Walter Benjamin dirá que é ele o fundador da tragédia moderna).
Também nas artes plásticas se verificará um impulso de grande modernidade: racionalismo, clareza na representação,sentido de harmonia e proporção, em suma, um "esforço pelo inteligível, sentido de superação da matéria, poder de observação, gosto pelo concreto, pelo individual, pelo singular" como escreve Maria Helena da Rocha Pereira em Estudos de História da Cultura Clássica, cap.VII,  pags.563  e segs.  ed. Fundação Gulbenkian, 2006.
Como se dizia na antiga Grécia, " o que fazia com que se sentissem gregos não era a raça, mas uma mentalidade, e chamam-se helenos mais os que participam da nossa cultura, do que os que ascendem a uma origem comum".
Algo de parecido com o que nos leva a falar de cultura europeia, ou cultura ocidental, sendo as várias línguas e nações tão diferentes.

É esta mentalidade, esta maneira de olhar o mundo, e dentro do mundo o próprio homem, que levará Platão, na República, a decidir que é sábio expulsar da cidade ideal o poeta, pois o poeta, como visionário que é, perturbaria o sentido do equilíbrio que se deseja na sociedade humana. O poeta, na obra, dá largas à paixão, à emoção, mas na cidade ideal (tirânica, ao fim e ao cabo...) só predominaria a filosofia da razão.

Tuesday, October 14, 2008

Herberto Helder



A Faca Não Corta o Fogo ( súmula e inédita), 2008

No início da década de sessenta todos os jovens liam, melhor devoravam àvidamente, A Colher na Boca, de Herberto Helder . 
Depois seguiram, fiéis, com  tudo o mais que se foi publicando, ao longo dos anos.
Mais do que vasta, a obra é intensa, e de devorada transforma-se em devoradora: de si mesma e dos seus leitores. Os versos têm garras e deixam em sangue o corpo do dizer que constituem e ao mesmo tempo mortalmente ferem.
Neste livro, cuja capa evoca o sopro primordial que poderíamos encontrar num William Blake, Ilda David celebra o fogo que nenhuma faca corta, como se diz no título e na epígrafe escolhida para o conjunto dos inéditos. A chama é puro ouro.
Ah, mas o fogo consome, arde nele uma palavra única, um verbo talvez, uma imagem, de mulher, de animal, ou de fruto ou de flôr (a rosa, sempre a rosa), ouro fundido na treva do coração.
Há corpos, há coisas, há também uma laranja,como no sonho de Descartes tinha havido um melão: fruta redonda, solar, apetecível e que se entrega aberta: energia que tudo vira do avesso, tudo transforma de dentro para fora, ou de fora para dentro.Pois no fim sempre o poeta comerá a laranja, depois de deixar que ela o comesse a ele...

 A laranja, com que força aparece de dentro para fora,
como o ar que se ocupa dela,
o ar ininterrupto,
como ocupa o ar todo,
como interrompe o mundo

Blake deu-nos o Tigre, Herberto dá-nos outro felino não menos mortal: um leopardo louco:

...
E então nenhuma razão me escurece além do crime
da metáfora directa
de um leopardo aluado como uma jóia.E ele levanta
a constelação craniana. A boca avança, límpida
chaga
até ao meu rosto.E neste espelho das coisas de repente
unidas todas, beija-me por mim dentro até
ao coração.
No meio.
Onde se morre do silêncio central
da terra. 

Herberto, directo, terreal, não quer o símbolo primevo de uma força que sempre tentaremos compreender sem nunca o conseguir, está para lá de nós, está para lá do mundo que nos é dado.
Mas pelo artifício da metáfora directa do seu leopardo louco, que também nos seus transes de outrora alguns shamans descreviam, Herberto vai mais longe, mais fundo, no coração da treva, da terra, toda feita silêncio.
 Aí mesmo se morre, no corpo,  no coração do silêncio. 

(Um conselho a quem ache difícil esta leitura: 
ler de Paul Ricoeur La Métaphore Vive). 





 

Saturday, October 4, 2008

O Símbolo: a Pantera de Rilke, o Tigre de Blake




Num pequeno livro de ensaios, Literatura e Alquimia, tive ocasião de dizer, àcerca do símbolo, que é uma "forma impura".
O que acontece nos sonhos acontece na arte, e como escreveu Gaston Bachelard ( L'Air et les Songes, O Ar e os Sonhos) nas imagens reside o segredo do dinamismo psíquico, do impulso que move o criador e que ele mesmo muitas vezes não saberá explicar.
Citando Jung, cuja leitura, em matérias de carácter simbólico é um imperativo cultural:
" A ciência pára nas fronteiras da lógica, mas não a natureza, que floresce onde ainda nenhuma teoria penetrou".
Não está a falar do mundo natural à nossa volta, mas sim da complexa natureza humana que hoje em dia as neuro-ciências investigam, esperando desvendar os mais recônditos e últimos segredos. Vive-se uma nova utopia: a de que o cérebro, o mais perfeito de todos os computadores concebíveis, acabará por ser totalmente mapeado podendo o homem vir a saber com precisão em que zona específica o impulso criador, como outros ( os sentimentos, a emoção, a clara ideia do Belo, como Platão a definiu) afinal se situa, podendo futuramente ser  melhor conhecido (controlado).
Como entender, neste contexto ambíguo, o que é um símbolo?
Fernando Pessoa dizia que para o entendimento dos símbolos se exige do intérprete "que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles:
simpatia (entenda-se empatia, afinidade)
intuição ( por intuição se entende o entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja)
inteligência ( decompõe e reconstrói noutro nível o símbolo)
compreensão (conhecimento de outras matérias, que iluminam o símbolo e o relacionam com outros) por palavras mais simples, refere-se Pessoa a uma cultura geral alargada

A quinta qualidade é de ordem superior, no dizer de Pessoa, algo como a inspiração proveniente do Além, ele alude a um Superior Incógnito, ao Santo Anjo da Guarda, caminhando já para um entendimento metafísico e  místico do símbolo, que não tem necessariamente de existir, a não ser no contexto de uma experiência, mais do que artística, religiosa.

Fiquemos pois com a simpatia, ou empatia, a intuição, a inteligência sensível, analógica (não-racional) e com a compreensão que se fundamenta num espectro cultural mais alargado.
O mais importante nos símbolos é a sua natureza colectiva: isso faz com que actuem durante tanto tempo sobre tanta gente. Como observa Bachelard:
" Os símbolos mais importantes não são individuais mas colectivos na sua natureza e origem", algo que podemos observar na lenda/mito de Fausto, até à elaboração grandiosa do Fausto I e II de Goethe.
Encontram-se nas religiões, antes de se desenvolverem no mundo laico que depois os absorve.
São representações colectivas do nosso imaginário, embora do ponto de vista religioso se definam como inspiração, intervenção de uma sabedoria superior, divina,cujo mistério o homem não penetra.
O termo revelação, se usado, deve ser entendido como algo que provém do sonho, da fantasia criadora e não de um propósito claro e definido.
A representação simbólica é uma manifestação espontânea. 
Jung observa que não há artistas que peguem no pincel ou na caneta e declarem 'agora vou fazer um símbolo'; a forma que aponta para uma intenção consciente é um sinal e não um símbolo.
Eis uma definição que se compreende bem. Diz Jung:
" Um sinal é sempre menos do que a coisa para que aponta, um símbolo é sempre mais do que podemos entender à primera vista...Por isso permanecemos com o símbolo, porque promete mais do que revela".
Belíssimo exemplo de poema carregado de simbolismo, traduzido e comentado por diversos autores, vezes sem conta,  é O TIGRE, de William Blake.
Aqui o deixo na versão magistral de Augusto de Campos, poeta ele mesmo, fundador com o irmão, Haroldo, do movimento de POESIA CONCRETA do Brasil. Assim vemos como a modernidade experimental de Campos à mesma se deslumbrou com o mistério do motivo deste tigre simbólico de Blake:

O Tigre

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna nocturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?

Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar? 
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu esta flama?

Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que côr, que acção?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo, que fornalha
o moldou? que mão, que garra
seu terror mortal amarra?

Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna nocturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?  

 Simplifiquei a ortografia do tradutor, pois neste caso o importante não é o jogo ou alusão caligráfica e sim apenas a discussão do sentido do poema, ou melhor, da imagem simbólica deste tigre, que muitos estudiosos encaram como representação de um Mal  primordial, presente na criação do mundo desde o primeiro momento;  variante, quem sabe se mais feroz ainda, da serpente do Éden, que deu a comer ,com a maçã, o conhecimento que o par primordial adquiriu de si mesmo e do jardim da Vida em seu redor; o poema faz parte da obra intitulada Songs of Experience, de 1794, contraponto das Songs of Innocence, de 1789 em que se inclui o poema the Lamb, o cordeiro; cordeiro e tigre são estudados como pares de opostos, um figurando a inocência, inclusivé de um Cristo redentor, e o outro o Mal absoluto que também, na visão dos teósofos ingleses desse tempo, é parte integrante da natureza de Deus . 

Inspirado pela mesma simbólica animal ( pois é verdade, os poetas têm os seus Bestiários próprios) Rilke dará, no seu poema da Pantera, a imagem do instinto preso nas grades da matéria, que tanto pode ser do corpo como do universo que não se deixa conhecer e nos remete para uma imagem que "morre no coração", num ponto oculto "onde um grande impulso se arrefece" por trás das grades da terra, que não há hipótese de abrir.A dança desta pantera é uma dança da morte, o seu olhar apagou-se, nada ilumina a esvelteza do seu corpo.
A metáfora é directa: nós, humanos, aprisionados no corpo da matéria, somos esse mesmo animal em que o impulso primeiro da criação já não se manifesta.
Feitos de sinais, de imagens e símbolos,  o poema desta Pantera, que perdeu o fogo do Tigre de Blake, representa bem o caminho da experiência da alma que se quis laica, realista, para não dizer mesmo materialista,na aurora do Modernismo. Blake, até natreva e no Mal encontrava a raiz e o sentido; Rilke terá de avançar mais um pouco, até à Elegias de Duíno, para recuperar a dimensão do sublime, ainda que aterrador, com o Anjo que de súbito poderia manifestar-se destruindo o humano, na sua fragilidade essencial.

Friday, October 3, 2008

Cinema Gore


A propósito de cinema gore, um excelente exemplo de autor português, Filipe Melo, com o seu I'll See You In My Dreams, de 2003.
Humor negro, surpreendente e refrescante no panorama quase sempre de melodrama tristonho português. 
Aqui não há lamechice, há a surpresa, o imprevisto jocoso, a ironia distanciada de um verdadeiro criador. Buñuel gostaria deste filme, se o visse. 
O rosto "trabalhado" pela maquillagem não é do realizador.