Da Vénus de Willensdorf à Vénus de Milo.
O que mudou na representação destes dois corpos de mulher?
Uma é a expressão de uma cultura primitiva, de há vinte ou trinta mil anos antes da nossa era.
Produto da visão de um artista - ou talvez de um shaman, numa tribu de nómadas caçadores para quem a questão fundamental era sem dúvida a da garantia da fertilidade e da reprodução.
A pequena estatueta era transportável, seguia com o grupo para onde quer que fosse e talvez possamos ainda imaginar que lhe fosse prestado culto, com sacrifício de animais, nalguma gruta onde repousassem por um tempo.
Os olhos daquele primitivo artista viam um corpo fecundo: seios e ancas largas, imagens de abundância.
O caso desta estatueta não é único, várias outras apareceram em escavações noutros lugares da Europa e da Ásia.
Interessante é comparar esta figura de mulher com outra Vénus, a de Milo, da época mais gloriosa da estatuária da Grécia clássica (séc.V A.C.).
Verifica-se desde logo a diferença: não se trata de um amuleto, transportável, garantindo algum benefício desejado, mas de uma reprodução, tão fiel quanto possível do que se imaginava ser a deusa do amor: Vénus, em tudo semelhante a uma linda mulher ( pois para os gregos os deuses eram como os humanos, tanto nas qualidades como nos defeitos, físicos ou morais).
O que mudou no olhar do artista criador?
O seu contexto social, religioso, cultural. Pois é no contexto, nas circunstâncias de vida que a arte se forma e se transforma, ao mesmo tempo que transforma os homens e o seu mundo.
Se na idade da Pedra tudo girava em torno da sobrevivência, no mundo grego, mais próximo do nosso, tudo gira em torno da proporção, da harmonia, da elegância.
Esta é uma estátua do século II A.C.
E já desde Platão, com a sua doutrina da esfera das Ideias
o Belo (como uma das Ideias Perfeitas) reproduz o Bom e o Verdadeiro:
Ética e Estética são esferas interligadas; e em ambas se reconhece a dimensão da Verdade, abrindo o homem ao Conhecimento.
Já não estamos perante uma sociedade de homens primitivos, mas sim perante uma sociedade evoluída e em evolução, com uma clara consciência de si: do seu corpo, da sua alma, do seu espírito.
Para as expressões da alma seria interessante estudarmos os grandes dramaturgos, como Eurípides, e algumas das suas tragédias, que espelham os dramas da humanidade, de outrora como de agora.
A Vénus de Milo difere pois da sua antecessora por se afastar daquele primeiro e primordial impulso e por exprimir, na materialidade do seu corpo harmonioso, o Reino das Ideias do grande filósofo, pai-fundador da nossa cultura ocidental.
Se na primeira Vénus o que nos atrai é o que nos espanta, o exagero das formas, nesta outra o que nos atrai é a harmonia serena.
Meditemos aqui sobre este conceito importante: o espanto, a admiração que a obra de arte causa, o incómodo, a perplexidade, o desejo de entender.
Não é arte aquilo que não provoca reacção, seja negativa ou positiva de negação ou interrogação.
A obra de arte interpela quem a contempla.Não deixa indiferente.
Daí a importância da arte numa sociedade que se deseja culta.
Entre os Modernistas salienta-se, em matéria de experimentação e interpelação, um dos pintores mais interessantes do século XX e que afirmava não ser surrealista: refiro-me a Magritte.
Cada um dos seus quadros, a começar logo pelos títulos, desafiadores, como o célebre do "ceci n'est pas une pipe", isto não é um cachimbo", colocado num óleo que representa um cachimbo, levanta a questão do real e da representação.
O nosso imaginário e a sua representação, ainda que numa arte próxima da figurativa- como a de Magritte aparenta ser, - serão sempre outra coisa, estarão sempre numa esfera para lá do real.
Daí que a denominação de surreal ajude a compreender.
A linguagem da arte é a linguagem do inconsciente, transposta, segundo os meios - pintura, poema, o que fôr - e dada a ver, materializada em cada obra.
Interessante é descobrir como em épocas diferentes e diferentes artistas - algo permanece intocado, uma espécie de "fundo", de arquivo de memória, que depois surge, com a sua marca própria de originalidade; mas a projecção dessa memória antiga, chamemos-lhe "arquétipo", gerada num inconsciente colectivo, arquivo da espécie humana, deixa traços.
É aqui que pretendo chegar: há traços de memória antiga, de figuras selvagens no bom sentido da palavra, no tocante à expressão do Feminino matriarcal, universal.
Da Vénus pré-histórica à mais recente de Picasso (ver o meu outro post) como no quadro de Magritte intitulado Discovery, de 1927, a descoberta da mulher é feita em analogia profunda com a origem: agora falando de Magritte com este corpo que ainda tem estrias da Árvore primeira, a Árvore da Vida de que a Grande-Mãe dá o fruto a comer.
Outrora como agora, o imaginário profundo tem raízes no nosso mais arcaico pensamento, que os surrealistas souberam explorar como ninguém.
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