Monday, January 11, 2010

Estilos


Sem dúvida que a questão do estilo e dos estilos é uma que se prende com a marca dos artistas, distinguindo-os dos outros e uns dos outros.
O estilo é a assinatura, é a forma distinta e distintiva de cada um dar forma e expressão à realidade tal como a sente, a vê, a interpreta, sabendo-se que se trata de representação do real e não do real-em-si.
Deixo, por curiosidade, um pequeno poema de José Carlos Barros (ver revista Criatura 2008, no meu blog literatura e arte) em que se discute o que é o estilo:

PÁSSARO
O estilo é o que une o pássaro
e a sua abstracção. O estilo
é o que permite à ideia de pássaro
ganhar súbita leveza e aventurar-se
num vôo real sobre os telhados
e as árvores. O estilo
é o que transfigura as palavras
em objectos sensíveis
ao tacto. O estilo
é uma cicatriz, uma incisão
nos pulsos protegidos pela tradição
e pelos muros altos das casas.


Aqui temos, em forma poética condensada, duas afirmações implícitas:
O estilo é o que une (pela expressão formal) uma realidade (neste caso de pássaro) e a sua abstracção ( a ideia que temos dele).
Pode-se então discutir o que é, o que são, as ideias que se formam no acto de criação do artista: abstracções, representações formais.
E ainda, o estilo marca a ruptura com a tradição ( a tal ferida nos pulsos, os muros altos das casas) com o fechamento que a tradição implica.
Esta função de ruptura será particularmente apreciada por todos os "Ismos" do século XX: do Expressionismo ao Surrealismo, Futurismo, Modernismo em geral.
Resumindo, em dois artistas que mereçam tal nome não encontraremos nunca dois pássaros iguais...

Friday, January 1, 2010

Magritte le jour et la nuit



O ano de 2009 fechou para mim com uma edição dvd sobre a obra de Magritte:
Magritte, le jour et la nuit, filme de Henri de Gerlache.
A acompanhar o filme um complemento que inclui uma selecção cronológica de 60 obras pertencentes ao Museu Magritte de Bruxelas e um extracto de entrevista com o pintor em que este fala sobre a sua obra.
O título da entrevista é já de si muito importante: De L'autre côté du Miroir, do outro lado do espelho, remetendo para a obra de Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas e Do outro Lado do Espelho.
Desde o célebre quadro representando um cachimbo, tendo como legenda ceci n'est pas une pipe que a verdadeira discussão se instala: o que é uma pintura? (a mesma interrogação se poderia aplicar a um poema, a uma ficção...a qualquer obra de arte, pois é a essencia da obra de arte que se discute).
A pintura não é o real, é uma representação do real.
Aquele cachimbo de Magritte não é um cachimbo, pois é uma representação do cachimbo que ele tinha eventualmente à sua frente. Ou nem isso, do cachimbo que ele se lembraria de ter visto e ali o colocava como desafio à sua frente na tela.
Assim sendo é enorme, é absoluta, a liberdade do artista perante o mundo, perante os outros, perante si mesmo.
Magritte começa por afirmar isso mesmo, a inteira liberdade com que abordou a criação e a sua reflexão sobre ela.
Dizia não gostar de ser considerado um artista: tinha profissão, trabalhava para ganhar a vida. Eram as horas do dia. Depois chegava a noite, com a sua sombra, mas também com a sua luz, a luz da ideia que se apresentava, do impulso que se materializava, ganhando a forma das obras tal como as conhecemos: misteriosas, oníricas, desafiantes.
Os primeiros 50 anos do séculoXX sofrem a influência de novas correntes de pensamento, com destaque para as obras de Freud e Jung e a importância atribuída aos fenómenos do inconsciente, individual e colectivo (sendo este o contributo de Jung para a noção de arquétipo universal, transversal a toda a cultura e imaginário da humanidade).
São os cultores do movimento Surrealista, do DADA e afins que sobretudo se inspiram nestas novas discussões que, ultrapassando os domínios da Consciência e da Razão, rompem com novos caminhos para a criação artística como pura manifestação de uma outra linguagem, a linguagem do inconsciente.
Opondo sentimento e emoção à razão, como já no século XVIII Goethe e os grandes Românticos tinham feito, eivados de um pensamento místico, ora mais gnóstico e hermético ora mais simplesmente panteísta, conforme as obras e os casos, os surrealistas como André Breton, fundador do movimento em França e escrevendo o primeiro Manifesto de 1923, os pintores como Salvador Dali (primeiro colaborando depois cortando com o movimento por considerar que tinha sido demasiado politizado) os cineastas como Bunuel e tantos outros (cabe recordar os irmãos Prévert, Jacques o poeta e Pierre o cineasta de Paris) foram tecendo a grande teia de pensamento e acção que sustentará também Magritte com a sua obra.
Referi a escolha do título do dvd como sendo especialmente adequada ao jogo que se verifica de luz e sombra, ou de simples contraste e de recorte, - algo que vinha da fotografia a preto e branco, dos primeiros filmes de Murnau, entre outros exemplos que se poderiam buscar.
Vamos assim descobrindo que há uma tradição, um suporte cultural, literário, filosófico, por trás da obra de Magritte. Nem de outro modo poderia ser, a obra de arte não é produto de acaso e quando se fala de inspiração essa mesma inspiração provém de um tecido mítico ( e por vezes místico) interiormente incorporado ( ainda que inconscientemente).
Outro pintor é citado quando se fala de Magritte: refiro-me a DE CHIRICO, que teria sido uma das suas influências.
De Chirico pertence à escola italiana dos pintores da escola dita metafísica, precisamente pela dimensão onírica que cultiva, sendo para tais artistas o inconsciente e o sonho, como sua directa manifestação, a prima materia da sua criação.
Tal como os alquimistas da Idade Média operam sobras as visões, as imagens contidas nos seus sonhos e não sobre a chamada realidade objectiva com que poderiam deparar-se ( é o caso da pintura dita realista, ou naturalista, cujo conceito mesmo assim é discutível: a paisagem de um romântico do século XIX não é a paisagem de um douanier Rousseau, e ainda menos a paisagem de um van Gogh.
Voltamos à questão da arte como representação.
De Chirico representava as suas paisagens lunares, de horizonte largo, indefinido, quase infinito; e pousadas nelas figuras estáticas, evocando quem sabe se deuses perdidos de uma muito longínqua e oculta pátria de mitos e sonhos por decifrar.
Com a sua obra estamos em pleno na dimensão que estrutura o imaginário arquetipico tal como Jung o definiu, ou mais longe um pouco no mundo das Ideias de Platão, não menos difícil de entender. Algo que o artista pode não entender, porque as vive.
O crítico e o estudioso é que têm de as entender para entender esse mundo da criação artística.
A representação é a reprodução idealizada, projectada em determinado espaço ( no caso da pintura) de uma determinada realidade que em si mesma não se pode atingir.
Das Ideias (em sentido platónico) não contemplamos a essência mas tão somente o seu reflexo, projectado como sombra na Caverna.
Em resumo e como desafio, o cachimbo de Magritte é a projecção da sua ideia de cachimbo e não o cachimbo-em-si, essência na realidade inatingível...
E o que serve para desconstruir a realidade do cachimbo serve, no caso da arte, para tudo o mais.


(Ler mais sobre Magritte e suas leituras e preferências no meu outro blog Literatura e Arte)

Sunday, February 1, 2009

Mozart, A Flauta Mágica, sublimação da Nigredo




Uma amiga igualmente atenta a estas questões do simbolismo das obras de arte chamou a minha atenção para uma obra de um grande erudito, especialista de Mozart:
M.F.M. van den Berk, The Magic Flute (na trad. inglesa) An Alchemical Allegory, ed. Brill, Leiden-Boston, 2004.
Encomendei a obra, e a melhor maneira que tenho de agradecer a informação, preciosa para quem como eu tem a paixão da Flauta Mágica, é dedicar-lhe este post.
A obra de van den Berk demonstra, à saciedade, como tanto o libretista como o compositor eram profundamente conhecedores da matéria simbólica, alquímica (e maçónica, pois eram ambos maçons) que procuravam ilustrar, pelo texto, pela concepção cénica e naturalmente pela música, numa distribuição de papéis e de árias musicais correspondentes ( também elas carregadas de inspiração simbólica: o trovão da rainha da noite, a alegria natural, algo inconsciente mas muito sedutora de Papageno, um dos principais agentes da acção, o lirismo extático dos príncipes que se amam, a severidade serena da intervenção de Sarastro, o Mestre de toda a operação concebida para sublimar o espaço ocupado pela nigredo da Rainha, decaída, da Noite).
A capa do livro reproduz o frontispício do libretto de 1971, já carregado de representações alquímicas: o templo ao fundo, como um forno de tijolo ( o forno onde os adeptos trabalhavam os metais da Pedra); o vaso hermético à direita, como uma taça do Graal; sob o vaso a caverna de Saturno ( emblema da melancolia, nigredo  que anunciava e propiciava o início da Obra de transformação); e à esquerda uma face da pirâmide ( o Egipto era considerado a primeira pátria da alquimia) com o horóscopo do adepto, que jaz à sua frente, aguardando o momento em que será "ressuscitado" passando a nova fase do seu percurso anímico. 
van den Berk procura, ao longo do seu estudo, uma fundamentação documental, histórica, sociológica, artística - que lhe permita depois, através da abundante citação de textos e gravuras de alquimia - concluir que essa é a marca, a lição fundamental da Ópera de Mozart, e que ao contrário do que se possa julgar, plenamente entendida em todos os sinais, pelo público da época. 
As ilustrações que escolhe são de gravuras célebres do século XVII, como as da Atalanta Fugiens, nuns casos, ou anteriores, como do Splendor Solis, ou mesmo do Rosarium Philosophorum (este estudado por Jung em todos os seus detalhes). Para depois, no confronto com esquissos que foram feitos para a Ópera nos fazer ver como o simbolismo é o mesmo, e como tal -simbolismo alquímico- deve ser lido (visto, ouvido...)
Vemos ao alto dois dos seis esquissos da produção de 1795, apresentada em Viena e da autoria de Emanuel Schikaneder  ( 1751-1812 ), o libretista amigo de Mozart, produtor, encenador e até actor quando era necessário.Foi acompanhado, na escrita lírica, por Karl Ludwig Giesecke (1761-1833) também ele bom conhecedor das doutrinas alquímicas.
Logo de início, a grande serpente, ou dragão (que na simbólica alquímica representa a força negra da matéria a sublimar) persegue o Príncipe Tamino, que desmaia de susto e será salvo pela três Damas de negro, servidoras da Rainha da Noite. Elas são 3 e a serpente, nesta produção da época de Mozart, é cortada em 3 partes, como se vê na gravura. A marca do 3 pode ser lida como os 3 princípios: enxofre, mercúrio, sal.E de facto, o enxofre masculino está representado pelo Príncipe, o mercúrio feminino e mutável, pelas Damas, e o sal - mediador- por Papageno que também ali se encontra, pois chega logo a seguir ao desmaio de Príncipe ( vinha entregar pássaros às damas da Rainha da Noite, que em troca lhe davam pão e vinho (indicação do alimento do corpo e da alma).Na gravura seguinte, numa fase mais adiantada da Ópera, vemos o Príncipe Tamino, como se fosse um novo Orfeu, a tocar a sua flauta (mágica) no meio dos servos do Templo representados como figuras simiescas. Mas é preciso saber que o macaco faz parte, simbolizando o negro, do bestiário alquímico, desde os tempos mais remotos. Há na mitologia egípcia um Hermes de cabeça de macaco. Tamino, com a sua Flauta Mágica, domará a violência natural daqueles elementos que o rodeiam.
van den Berk descreve a Rainha da Noite como deusa primordial, ligada aos mitos da Grande- Mãe, da Mãe-Terra, cujos cultos aterradores, praticados na escuridão de cavernas, envolvendo sacrifícios rituais de imolação, podiam agora, na época das Luzes, ser sublimados: transformando a Isis negra numa figura como a da princesa Pamina, tocada por um Sarastro-Osiris solar, que a entregaria ao par certo, Tamino, para uma conjunção andrógina perfeita.
A Ópera abre cantando o Amor, como força natural e absoluta, e fecha com o mesmo canto.
O amor sublimado ( processo que se verifica melhor na relação Papageno-Papagena, o passarinheiro coberto de penas, como os pássaros que vendia) é o verdadeiro fundamento da harmonia das esferas, cósmicas, naturais e sociais. 
O que se impõe, e talvez eu o faça, noutro blog, de simbologia e alquimia, é a análise das cenas mais interessantes (para o nosso ponto de vista) do libreto, ele em si mesmo um verdadeiro manifesto da fé na capacidade alquímica e maçónica de mudar o mundo. Do negro e lunar primitivismo ao branco (sublimado) do solar Iluminismo.
O autor deste magnífico estudo que venho a comentar recorda, reproduzindo as ilustrações, a visita de Mozart em 1770 ao templo de Isis, em Pompeia.
Não era possível não se ter impressionado com o que viu. 
O volume de van den Berk tem ainda um outro aliciante: o libreto completo da edição mozartiana, com as anotações do compositor, e a gravação em cd-audio da Ópera nesta versão, como até hoje nunca foi interpretada.
Ocupei-me um pouco desta Ópera em dois livros de ensaios: A Arte de Jardinar, editado pela Presença em 1991; e Teatro e Sociedade, editado pela Universidade Lusófona, em 2007 .
Mas o prazer que tenho em ver num grande erudito uma interpretação tão próxima do que tenho tentado fazer com esta e outras obras, torna-se ainda maior quando penso num meu outro estudo, sobre um conto de Goethe: A Simbologia Alquímica no Conto da  Serpente Verde de Goethe, editado pela Universidade Nova de Lisboa, em 1976, enquanto preparava a minha dissertação de doutoramento sobre A Alquimia No Fausto I e II de Goethe.
Devo dizer que nunca me afastei destas matérias e ainda hoje é o seu estudo que me move.
Um abraço de agradecimento a esta amiga, também ela Professora Universitária: Cristina Álvares. 
  

Saturday, November 29, 2008

Estética



De José Gil, A Imagem-Nua E As Pequenas Percepções, ed.Relógio d'Água, Lisboa, 1996 (tradução do francês de Miguel Serras Pereira).

Uma obra de leitura obrigatória para quem se interesse pelas questões da percepção do Belo, através das obras de um Duchamp, de um Malevitch e outros, discutindo pelo caminho o pensamento de Kant, mas e acima de tudo abrindo a doutrina das pequenas percepções na experiência estética, de que modo se pressentem, se manifestam e influenciam a sensibilidade e o pensamento, permitindo uma melhor compreensão do que é o fenómeno estético, nos nossos dias e não só.
Comecemos pela "visão do invisível".
Diz o autor:
"A experiência primeira é a da imagem intensiva.Antes de a percepção se estabilizar, se fixar à distância e se impor, o mundo da primeira infância organiza-se em torno de vagas sensoriais num turbilhão, imprevisíveis.Antes da consciência perceptiva, há as variações da imagem. Porque a sensação desabrocha em imagens, tal como a percepção: o bloco emotivo que as atravessa e as envolve mantém-nas ainda soldadas, indiferenciadas, sincronizadas" (p. 23).
Repare-se como estas observações de imediato nos ajudam a ver/ler melhor, muito melhor, uma obra como a de Paula Rego, que se constrói a partir, precisamente, de um conjunto de imagens resultantes do mundo da infância, mas que a mão ordena, à medida que a consciência as recebe exprime. 
Pois se é certo que a experiência estética, como sublinha José Gil, " não visa um sentido", " é desinteressada", na medida em que nada exige em troca a não ser esse mesmo prazer estético, não é menos certo que procura e oferece uma determinada visibilidade do invisível, um "aparecer singular do ser e do espírito", citando outra vez José Gil (p.24).
Fernando Pessoa, o supremo interrogador da consciência, deixa bem claro este percurso, num célebre poema do ciclo de Além-Deus:

I/ Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando-
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver? 

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é ôco-
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo- eu e o mundo em redor-
Fica mais que exterior ".

O poema continua, descrevendo, depois da experiência do Vazio, a Iluminação de Deus.
Mas o que nos interessa é a descrição de como a imagem primeira, do rio a correr, e a percepção desse facto, de que o rio está a correr e o poeta a olhar para ele, o conduzirá a uma interrogação, também ela primeira, do que é o próprio ser. 
Assim, a interrogação é a seguinte: o que sou eu, que aqui estou, perante o rio que corre?
No ôco do pensamento que então se forma, no vazio de onde tudo emana, imagens, percepções, se dará  então o encontro com Deus: "E súbito encontro Deus".
A pequena percepção do rio conduzirá o poeta, ao pensar no significado da sua existência, no seu estar-ali, diante do rio (imagem tradicional da vida) a uma percepção maior, que se forma no vazio da própria consciência, segundo as descrições mais do que abundantes da mística tradicional.

Mas o poema V/Braço Sem Corpo Brandindo Um Gládio nos levará muito mais longe, para além da percepção abismal de Deus, tida  no início:

Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?   E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de fôlhas vestida-
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando- o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real? 

Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo?
Quem é que me vê?
Erro-me...E o pombal elevado
Está em tôrno na pomba, ou de lado?

A interrogação aprofundou-se, posto de lado o mistério de Deus, que permanece incognoscível (... grande Intervalo/ Mas entre quê e quê) e centra-se agora na própria consciência do eu, suporte de uma existência que é interrogada, também ela, sem que surja resposta de imediato.
Não haverá resposta, mas permanente interrogação, e nisso reside a modernidade do poema, que podemos continuar a decifrar lendo um outro, mais definido como proposta inovadora, Chuva Oblíqua, matriz do Interseccionismo que Pessoa viria a propôr como seu contributo para os ismos do tempo. 
Em Chuva Oblíqua cruzam-se duas paisagens, uma exterior, de uma Lisboa marítima, outra interior, de um sentimento ou de uma consciência de si já dividida em que não se distinguirá a matéria real da matéria do sonho: "Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo.../Não sei quem me sonho...".
O poema é composto por seis estrofes, cada uma jogando com as intersecções que serão sua marca, num jogo alquímico de elementos  opostos:
Terra/Mar 
Sol/ Sombra
Horizontal/Vertical
Lado de cá/Lado de lá
Interior/Exterior
Tempo/Espaço
Presente/Passado
Branco/Negro

para culminar, na estrofe V, com uma imperfeita imagem do andrógino mítico, descrito pela fusão de "dois grupos que se encontram e se penetram/ Até formarem só um que é dois"  banhados por uma luz  de lua e de sol, que ali também se fundem, no meio de um conjunto de imagens soltas, desconexas, recordando o exercício proposto da intersecção surreal.
Há duas realidades no poema, e em cada estrofe a "hora dupla", como o poeta a define, permite ver não a realidade mesma mas "o pó das duas realidades": o rasto, a marca imaginal, "pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...".
Finalmente na estrofe VI se revela o processo de incantação sofrido,ou provocado: o maestro ( a Razão condutora? a Emoção primeira?) sacode a batuta e o poeta recorda a sua infância, quando brincava no quintal, e conclui que a sua infância está em todos os lugares: assim, como num processo de análise minucioso, ainda que surpreendente, pois não oferece paz, nem solução.
Confundem-se as imagens ao ritmo de uma composição alucinada, como o girar da bola da infância no quintal, até que
 " A música cessa como um muro que desaba/ A bola rola pelo despenhadeiro dos sonhos interrompidos" 
 e o maestro , tornando-se "preto" agradece com uma bola "branca" no alto da cabeça "Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo..."
Foi um poema-sonho, um poema-viagem pela esfera do inconsciente, o Intervalo onde nem Deus nem Homem afinal se revelam plenamente, deixando apenas um apontamento: o da infância onde tudo teve, tem e pode ou não  vir a ter lugar.
Como tive ocasião de escrever em ensaio publicado há anos ( S.Reckert,Y.Centeno, Fernando Pessoa, Tempo, Solidão, Hermetismo, 1978 ), é útil recordar que Chuva Oblíqua foi escrito logo a seguir a O Guardador de Rebanhos de Caeiro, marcando a grande ruptura heteronímica do poeta.
Chuva Oblíqua seria, nas palavras do poeta, a tentativa de regressar a si mesmo: 
"O regresso de FernandoPessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só...a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro (Obra Poética, 683).
Na impossibilidade de regressar à inconsciência inocente da infância, como propõe Caeiro (Mestre, mas ingénuo...) regressa o poeta a si próprio: para sempre consciente e dividido;
Como afirmou Eduardo Lourenço, Chuva Oblíqua é uma tentativa vã de unificar o que se tinha quebrado. A par de uma aspiração forte à Unidade o que se verifica é uma fragmentação definitiva, o Tropeção no Intervalo, a Queda no Abismo da própria consciência indefinida.
O poeta atravessou o limiar das múltiplas sensações, vindo a descobrir que nada na arte tem limite.
 






Wednesday, November 26, 2008

As Meninas



Pelas mãos de Paula Rego e de Agustina Bessa-Luís, uma pequena obra-prima, de pintura e de prosa, entre o comentário e a ficção  a que a pintura de Paula incita. Por um lado tudo é memória, quase biografia, se não fosse que a Arte da Pintura transforma tudo aquilo em que toca. E se não fosse que também a Escrita de Agustina é transformadora, modeladora de um real que ela não vive sem apelar ao que nela também foi, ou é, memória transmutada. Observa Agustina que 
" A obra de Paula é autobiográfica, mas é sobretudo assustadora.Ela é assustadora. Mas porquê? Há alguma coisa de inquietante no que se distingue do normal, do admitido como tal. Artista Associada da National Gallery, em Londres, tem direito a um atelier no edifício do museu e a um salário. Isto talvez a moleste, sente-se um cão acorrentado (...) As histórias mais aterradoras são inspiradas por uma noção de imensidão. Nos contos de Poe há essa ideia, flutuante e dinâmica, de qualquer coisa que é desmedida e inexpugnável".
Mas o mais interessante, nas observações de Agustina, é a comparação que faz do Desenho de Paula com a Escrita (as Maiúsculas são minhas).
" O desenho de Paula é uma escrita. Paciente, determinada, barroca e condescendente ao mesmo tempo. É uma escrita que se aprende na solidão, que pede a aprovação desse mago inteiror que se chama arte. Onde nasce a arte? Que caminhos percorreu até chegar a essa hábil construção sobre os abismos do nada, colhendo de passagem as formas, as variações, as presenças ? Já estava pronta nas grutas de Lascaux e nas abóbadas de Altamira. Não era uma tribu quem pintou aqueles bisontes e gazelas. Era alguém dotado, que se escondia no negror da caverna para pintar, levando com ele uma lâmpada de óleo e sujando os dedos de fuligem e de sangue para desenhar o que vira num relance, quase só um vislumbrar agudo da realidade. A realidade  era a sua obra e não o que acontecia à luz da manhã, quando as feras voltam da caçada indo beber aos lagos e deixando na areia remota a marca da garra vermelha, pesada e ainda fumegante de morte.
O desenho é uma pronúncia, como a da fala. Onde nascemos, que influência tiveram em nós as primeiras vozes que ouvimos, as corruptelas, o som e a intenção que ele transmite, se de agressão ou carinho, tudo aparece no desenho da escrita (...) A fala é igualmente feita pelos hábitos da infância (...) o desenho, como a fala, traduz essa experiência inocente da primeira idade".

Acrescento agora eu que pelos caminhos da vida a inocência se perde e, na pintura como na prosa destas duas admiráveis artistas do nosso século XX, a grande lição é a da lucidez que se adquire: vivendo, em primeiro lugar, a plenitude do real, ainda que imperfeito; e guardando a memória do que foram as primeiras e únicas Iluminações de um passado ora presente ora distante.

Saturday, November 15, 2008

Shadows, de Inez Wijnhorst




Inez Wijnhorst tem apresentado regularmente, em várias exposições, uma obra de grande impacto cultural e não apenas artístico (não se entenda, pelo que digo, que a dimensão estética da sua obra é por essa razão menor, antes pelo contrário).
Não há arte sem cultura, a história tem mostrado que em cada grande artista, capaz de criar e inovar, renovando-se, o suporte cultural, seja filosófico, literário ou outro está sempre presente, embora não explícito, na maior parte dos casos.É preciso saber encontrá-lo, nisso reside o interesse, o mistério.
O criador expõe-se, consciente ou inconscientemente. E consigo expõe o seu mundo, a cultura que o formou, o desenvolvimento que teve, as memória que guarda ou que desloca para uma outra esfera. Nessa esfera podem ficar guardadas, sem que estejam reprimidas, para usar a terminologia de Freud, e podendo reaparecer a propósito de qualquer reminiscência. Penso em Proust, claro, com a evocação da Petite Madeleine. O sabor desse bolinho desfeito com chá na sua boca fá-lo estremecer com a sensação de que algo de extraordinário lhe está a acontecer. E cito:
" Um prazer delicioso me tinha invadido, isolado, sem que eu  entendesse a causa. De imediato me tinha tornado indiferentes as vicissitudes da vida, os seus desastres inofensivos, a sua brevidade ilusória, do mesmo modo que o amor nos faz sentir, preenchendo-me com uma essência preciosa: ou melhor, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde me podia chegar essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao sabor do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infnitamente, não podia ser da mesma natureza...Pouso a chávena e viro-me para o meu espírito.É a ele que cabe encontrar a verdade.Mas como?...Procurar? não só: criar."
E chegamos, com a minuciosa descrição de Proust, que aqui simplifiquei, ao exercício profundo do acto criador: 
"O que palpita assim , no meu interior, deve ser a imagem, a recordação visual que ligada a esse sabor a faz chegar até mim...Conseguirá atingir a superfície da minha clara consciência, essa recordação, esse momento antigo que a atracção de um instante veio de tão longe solicitar,comover, erguer do fundo de mim mesmo? Não sei". 
A imagem, qualquer que seja, transporta consigo uma interrogação. 
Podemos, de início, partir de uma ideia, mas logo ela se transformará em imagem, de energia bem mais poderosa. E então, a-posteriori, no esforço de clarificar esse processo da imagem que de súbito surge, poderemos tentar recuperar a ideia. No caso de Proust ele mesmo explica o caminho, embora confesse não ter a certeza de que o entenderá cabalmente. A obra de criação, no seu caso como no caso de todos os criadores, permanecerá sempre, de algum modo, fechada em si mesma, desafiando as interpretações.
O mais recente conjunto de obras de Inez Wijnhorst, que ela intitulou SHADOWS, faz precisamente isto: desafia as interpretações.
Podemos regressar às obras anteriores, sobretudo ao conjunto de caixas, aglomerações múltiplas e multiplicadas, numa articulação mandálica, de geometria perfeita (de colmeias ou de formigueiros) ora abertas, ora fechadas, sem chave visível (como no caso de Alice, com as suas portas). As caixas, como as gavetas, pertencem ao imaginário do espaço mais íntimo, da casa, do quarto, o espaço onde a protecção e o refúgio ainda são possíveis, face à agressão temível ou temida do mundo exterior.
Mas eis que agora, neste novo conjunto, esse espaço se abriu: e dele emergem as Sombras.
Anima, Animus - são os termos que ocorrem, formas emergindo de um fundo obscuro, que alguma coisa do real mais vivido ou mais sonhado, fez surgir no espaço branco do papel. Poderia falar de uma pulsão que o mito do andrógino bem representaria. Mas não me parece que seja esse o caso. Também aqui, como com a Madeleine de Proust, não é fácil entender o processo que leva ao que Gilbert Durand chamaria a "condensação" da imagem nesta forma determinada, de dois seres sugerindo um ser duplo, ambos, como Orfeu e Eurídice, emergindo da treva de que tentam escapar. 
A árvore que por trás se desenha, que árvore será: a do Conhecimento,  que provocou a Queda? ou a da Vida Eterna, a que o par primordial não teve acesso? 
A Imagem aí está, a confrontar-nos com uma interrogação também ela primordial.O que nela está latente só se tornará manifesto quando a nossa leitura se tornar mais límpida, mais clara. 
Durand fala do "oco", do vazio, e do "Verbo" ( o "dizer" ou "fazer" no acto da Criação) . Talvez por aqui se entendam as Sombras que Inez foi descobrindo: elas emanam desse oco, desse Vazio mítico, fundador, e adquirem, pela sua mão, o novo estatuto de Presença que se quer actual e actuante, e não apenas latente, no universo onírico depressa dispersado, ao acordar.São conhecidas as várias histórias dos homens que não tinham sombra, por ter vendido a alma ao diabo.Sendo aqui a sombra a imagem da  sua própria essência,  do seu ser. Peter Pan também perdeu e procurou a sombra que lhe fugia: foi Wendy, a menina, Anima incipiente, que lha coseu e entregou de volta, a ele, puer eternus, vivendo para sempre na nossa imaginação. 
As Sombras de Inez são algo mais: formas que amadurecem num caminho que não está terminado, mas em que o jogo complexo do Yin e do Yang ocupará um lugar.
   
  



 

Friday, November 7, 2008

A Diferença


A diferença:
física
psíquica
religiosa
cultural 
social 
política
( e last but not least, literária)

Ex. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação
William Shakespeare, The Tempest
Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas
Tim Burton, Eduardo Mãos de Tesoura
Maria Velho da Costa, Myra

Foram as viagens marítimas e a descoberta de outros povos, outras culturas e religiões, que ao mesmo tempo encantaram e assustaram os navegadores e os políticos, que ajudaram a reorganizar uma nova visão do mundo, dando lugar à diferença e ao outro .
Há, desde os séculos XV- XVI, muitos relatos de viagens, de naufrágios, de conquistas que foram maravilhando os Senhores do Ocidente, em particular Espanha, Portugal e Inglaterra. 
Desde a Carta de Pero de Caminha, sobre a descoberta do Brasil, aos relatos, ao tempo considerados miríficos e mentirosos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ( a piada corrente era Mentes,Pinto? Minto) passando pela obra-prima de maturidade da peça de Shakespeare, A Tempestade -sem esquecer a Utopia, de Thomas More- todo um outro mundo se oferece ao imaginário tradicional.
Encontram-se, nos outros povos, modelos que deveriam, dizem os narradores, inspirar o comportamento das sociedades da época e dos seus condutores seculares e espirituais.
Modelos de ingénua integração na natureza, como no caso dos índios do Brasil, ou de requintada organização social, de delicada deferência para com os estrangeiros, como relata Fernão Mendes Pinto, ao ser recebido na corte do Japão.
Na Grécia antiga quem não era grego, no sentido de ter recebido a educação que modelava os comportamentos e as inquirições filosóficas do tempo, era chamado de "bárbaro". E tal como noutros casos conhecidos, os bárbaros, uma vez conquistados, não tinham outra esfera que não a da escravatura.
A esses "outros" no interior da moldura social não eram reconhecidos direitos.
Foi assim , durante séculos, até que no século XVIII se ponderou novo modelo: de liberdade, igualdade, fraternidade, pelos filósofos da Revolução, e de respeito pela diferença de raça, côr, cultura, estatuto social, religião, pelos fundadores da Maçonaria. 
É assim que veremos, em Nathan o Sábio, de Lessing ou na Flauta Mágica, de Mozart  os novos ideais de respeito pela diferença.
Mozart coloca na boca de Papageno, respondendo ao Príncipe Tamino que lhe pergunta
 "quem és tu? " uma resposta óbvia: 
" um homem, como tu ! "
Assim começa, logo no primeiro Acto, a lição moral desta magnífica ópera.

Lisboa é hoje multirácica, multicolor, multilingue, multireligiosa.
Há acasos felizes, e eis que Maria Velho da Costa nos presenteia com um romance novo, numa altura em que a questão da diferença pode voltar a fazer sentido, nem sempre pelas melhores razões. 
Outrora saímos e voltámos, agora outros saem e talvez, no sonho de uma Europa utópica, não desejem voltar nunca, aspirando a ficar por aqui. 
O que oferece Portugal a todos esses, jovens ou menos jovens, que aqui chegam no sonho da Demanda?
Deixando de lado o passado, fiquemos no presente que já contém um futuro:
Sugiro que se leia MYRA. Enveredaremos por uma aventura literária, pessoal, social e linguística ímpar, como em todos os livros de Maria.