Num pequeno livro de ensaios, Literatura e Alquimia, tive ocasião de dizer, àcerca do símbolo, que é uma "forma impura".
O que acontece nos sonhos acontece na arte, e como escreveu Gaston Bachelard ( L'Air et les Songes, O Ar e os Sonhos) nas imagens reside o segredo do dinamismo psíquico, do impulso que move o criador e que ele mesmo muitas vezes não saberá explicar.
Citando Jung, cuja leitura, em matérias de carácter simbólico é um imperativo cultural:
" A ciência pára nas fronteiras da lógica, mas não a natureza, que floresce onde ainda nenhuma teoria penetrou".
Não está a falar do mundo natural à nossa volta, mas sim da complexa natureza humana que hoje em dia as neuro-ciências investigam, esperando desvendar os mais recônditos e últimos segredos. Vive-se uma nova utopia: a de que o cérebro, o mais perfeito de todos os computadores concebíveis, acabará por ser totalmente mapeado podendo o homem vir a saber com precisão em que zona específica o impulso criador, como outros ( os sentimentos, a emoção, a clara ideia do Belo, como Platão a definiu) afinal se situa, podendo futuramente ser melhor conhecido (controlado).
Como entender, neste contexto ambíguo, o que é um símbolo?
Fernando Pessoa dizia que para o entendimento dos símbolos se exige do intérprete "que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles:
simpatia (entenda-se empatia, afinidade)
intuição ( por intuição se entende o entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja)
inteligência ( decompõe e reconstrói noutro nível o símbolo)
compreensão (conhecimento de outras matérias, que iluminam o símbolo e o relacionam com outros) por palavras mais simples, refere-se Pessoa a uma cultura geral alargada
A quinta qualidade é de ordem superior, no dizer de Pessoa, algo como a inspiração proveniente do Além, ele alude a um Superior Incógnito, ao Santo Anjo da Guarda, caminhando já para um entendimento metafísico e místico do símbolo, que não tem necessariamente de existir, a não ser no contexto de uma experiência, mais do que artística, religiosa.
Fiquemos pois com a simpatia, ou empatia, a intuição, a inteligência sensível, analógica (não-racional) e com a compreensão que se fundamenta num espectro cultural mais alargado.
O mais importante nos símbolos é a sua natureza colectiva: isso faz com que actuem durante tanto tempo sobre tanta gente. Como observa Bachelard:
" Os símbolos mais importantes não são individuais mas colectivos na sua natureza e origem", algo que podemos observar na lenda/mito de Fausto, até à elaboração grandiosa do Fausto I e II de Goethe.
Encontram-se nas religiões, antes de se desenvolverem no mundo laico que depois os absorve.
São representações colectivas do nosso imaginário, embora do ponto de vista religioso se definam como inspiração, intervenção de uma sabedoria superior, divina,cujo mistério o homem não penetra.
O termo revelação, se usado, deve ser entendido como algo que provém do sonho, da fantasia criadora e não de um propósito claro e definido.
A representação simbólica é uma manifestação espontânea.
Jung observa que não há artistas que peguem no pincel ou na caneta e declarem 'agora vou fazer um símbolo'; a forma que aponta para uma intenção consciente é um sinal e não um símbolo.
Eis uma definição que se compreende bem. Diz Jung:
" Um sinal é sempre menos do que a coisa para que aponta, um símbolo é sempre mais do que podemos entender à primera vista...Por isso permanecemos com o símbolo, porque promete mais do que revela".
Belíssimo exemplo de poema carregado de simbolismo, traduzido e comentado por diversos autores, vezes sem conta, é O TIGRE, de William Blake.
Aqui o deixo na versão magistral de Augusto de Campos, poeta ele mesmo, fundador com o irmão, Haroldo, do movimento de POESIA CONCRETA do Brasil. Assim vemos como a modernidade experimental de Campos à mesma se deslumbrou com o mistério do motivo deste tigre simbólico de Blake:
O Tigre
Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna nocturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?
Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu esta flama?
Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que côr, que acção?
Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo, que fornalha
o moldou? que mão, que garra
seu terror mortal amarra?
Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?
Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna nocturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?
Simplifiquei a ortografia do tradutor, pois neste caso o importante não é o jogo ou alusão caligráfica e sim apenas a discussão do sentido do poema, ou melhor, da imagem simbólica deste tigre, que muitos estudiosos encaram como representação de um Mal primordial, presente na criação do mundo desde o primeiro momento; variante, quem sabe se mais feroz ainda, da serpente do Éden, que deu a comer ,com a maçã, o conhecimento que o par primordial adquiriu de si mesmo e do jardim da Vida em seu redor; o poema faz parte da obra intitulada Songs of Experience, de 1794, contraponto das Songs of Innocence, de 1789 em que se inclui o poema the Lamb, o cordeiro; cordeiro e tigre são estudados como pares de opostos, um figurando a inocência, inclusivé de um Cristo redentor, e o outro o Mal absoluto que também, na visão dos teósofos ingleses desse tempo, é parte integrante da natureza de Deus .
Inspirado pela mesma simbólica animal ( pois é verdade, os poetas têm os seus Bestiários próprios) Rilke dará, no seu poema da Pantera, a imagem do instinto preso nas grades da matéria, que tanto pode ser do corpo como do universo que não se deixa conhecer e nos remete para uma imagem que "morre no coração", num ponto oculto "onde um grande impulso se arrefece" por trás das grades da terra, que não há hipótese de abrir.A dança desta pantera é uma dança da morte, o seu olhar apagou-se, nada ilumina a esvelteza do seu corpo.
A metáfora é directa: nós, humanos, aprisionados no corpo da matéria, somos esse mesmo animal em que o impulso primeiro da criação já não se manifesta.
Feitos de sinais, de imagens e símbolos, o poema desta Pantera, que perdeu o fogo do Tigre de Blake, representa bem o caminho da experiência da alma que se quis laica, realista, para não dizer mesmo materialista,na aurora do Modernismo. Blake, até natreva e no Mal encontrava a raiz e o sentido; Rilke terá de avançar mais um pouco, até à Elegias de Duíno, para recuperar a dimensão do sublime, ainda que aterrador, com o Anjo que de súbito poderia manifestar-se destruindo o humano, na sua fragilidade essencial.
4 comments:
Cara I. K. Centeno,
chegou hoje o me primeiro livro da sua autoria! É precisamente a colecção de ensaios a que se refere ... 'Literatura e Alquimia'.
Gostaria de a convidar a visitar um espaço muito recente (http://marchadosespiritoslivres.blogspot.com/), de carácter intimista, muito livre ... onde nos encontramos, alguns espíritos, para partilhar. Poesia, música, fotografia. Acabei de colocar uma pequena referência à Y.K. Centeno.
Seria uma honra, para mim e para o outro espírito, poder convidá-la a integrar aquele espaço, participando como e quando entendesse. Infelizmente não tenho o e-mail da Sra. Professora pelo que deixo aqui estas palavras todas ...
Obrigada por tudo!
Cordialmente,
Moriae
Cara M.
Já visitei o blog, que acho muito inspirado.Iremos falando...
Cara Yvette, é um blogue a dar primeiros passos .... surgiu da expressão espíritos livres, associada aos professores mas ... agora estamos a depurar. O Ramiro Marques foi o feliz autor da expressão.
Muito obrigada! :-)
Entretanto, é muito engraçado finalmente conhecer a sua obra! coincidências felizes :)
Sempre,
m.
Hoje vou colocar no Mapas um poema com um Tigre- infinitamente mais modesto. Mas é o meu tigre, como um gato-nosso estimamos sempre, e pensamos que é bonito. Vale.
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