Saturday, November 15, 2008

Shadows, de Inez Wijnhorst




Inez Wijnhorst tem apresentado regularmente, em várias exposições, uma obra de grande impacto cultural e não apenas artístico (não se entenda, pelo que digo, que a dimensão estética da sua obra é por essa razão menor, antes pelo contrário).
Não há arte sem cultura, a história tem mostrado que em cada grande artista, capaz de criar e inovar, renovando-se, o suporte cultural, seja filosófico, literário ou outro está sempre presente, embora não explícito, na maior parte dos casos.É preciso saber encontrá-lo, nisso reside o interesse, o mistério.
O criador expõe-se, consciente ou inconscientemente. E consigo expõe o seu mundo, a cultura que o formou, o desenvolvimento que teve, as memória que guarda ou que desloca para uma outra esfera. Nessa esfera podem ficar guardadas, sem que estejam reprimidas, para usar a terminologia de Freud, e podendo reaparecer a propósito de qualquer reminiscência. Penso em Proust, claro, com a evocação da Petite Madeleine. O sabor desse bolinho desfeito com chá na sua boca fá-lo estremecer com a sensação de que algo de extraordinário lhe está a acontecer. E cito:
" Um prazer delicioso me tinha invadido, isolado, sem que eu  entendesse a causa. De imediato me tinha tornado indiferentes as vicissitudes da vida, os seus desastres inofensivos, a sua brevidade ilusória, do mesmo modo que o amor nos faz sentir, preenchendo-me com uma essência preciosa: ou melhor, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde me podia chegar essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao sabor do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infnitamente, não podia ser da mesma natureza...Pouso a chávena e viro-me para o meu espírito.É a ele que cabe encontrar a verdade.Mas como?...Procurar? não só: criar."
E chegamos, com a minuciosa descrição de Proust, que aqui simplifiquei, ao exercício profundo do acto criador: 
"O que palpita assim , no meu interior, deve ser a imagem, a recordação visual que ligada a esse sabor a faz chegar até mim...Conseguirá atingir a superfície da minha clara consciência, essa recordação, esse momento antigo que a atracção de um instante veio de tão longe solicitar,comover, erguer do fundo de mim mesmo? Não sei". 
A imagem, qualquer que seja, transporta consigo uma interrogação. 
Podemos, de início, partir de uma ideia, mas logo ela se transformará em imagem, de energia bem mais poderosa. E então, a-posteriori, no esforço de clarificar esse processo da imagem que de súbito surge, poderemos tentar recuperar a ideia. No caso de Proust ele mesmo explica o caminho, embora confesse não ter a certeza de que o entenderá cabalmente. A obra de criação, no seu caso como no caso de todos os criadores, permanecerá sempre, de algum modo, fechada em si mesma, desafiando as interpretações.
O mais recente conjunto de obras de Inez Wijnhorst, que ela intitulou SHADOWS, faz precisamente isto: desafia as interpretações.
Podemos regressar às obras anteriores, sobretudo ao conjunto de caixas, aglomerações múltiplas e multiplicadas, numa articulação mandálica, de geometria perfeita (de colmeias ou de formigueiros) ora abertas, ora fechadas, sem chave visível (como no caso de Alice, com as suas portas). As caixas, como as gavetas, pertencem ao imaginário do espaço mais íntimo, da casa, do quarto, o espaço onde a protecção e o refúgio ainda são possíveis, face à agressão temível ou temida do mundo exterior.
Mas eis que agora, neste novo conjunto, esse espaço se abriu: e dele emergem as Sombras.
Anima, Animus - são os termos que ocorrem, formas emergindo de um fundo obscuro, que alguma coisa do real mais vivido ou mais sonhado, fez surgir no espaço branco do papel. Poderia falar de uma pulsão que o mito do andrógino bem representaria. Mas não me parece que seja esse o caso. Também aqui, como com a Madeleine de Proust, não é fácil entender o processo que leva ao que Gilbert Durand chamaria a "condensação" da imagem nesta forma determinada, de dois seres sugerindo um ser duplo, ambos, como Orfeu e Eurídice, emergindo da treva de que tentam escapar. 
A árvore que por trás se desenha, que árvore será: a do Conhecimento,  que provocou a Queda? ou a da Vida Eterna, a que o par primordial não teve acesso? 
A Imagem aí está, a confrontar-nos com uma interrogação também ela primordial.O que nela está latente só se tornará manifesto quando a nossa leitura se tornar mais límpida, mais clara. 
Durand fala do "oco", do vazio, e do "Verbo" ( o "dizer" ou "fazer" no acto da Criação) . Talvez por aqui se entendam as Sombras que Inez foi descobrindo: elas emanam desse oco, desse Vazio mítico, fundador, e adquirem, pela sua mão, o novo estatuto de Presença que se quer actual e actuante, e não apenas latente, no universo onírico depressa dispersado, ao acordar.São conhecidas as várias histórias dos homens que não tinham sombra, por ter vendido a alma ao diabo.Sendo aqui a sombra a imagem da  sua própria essência,  do seu ser. Peter Pan também perdeu e procurou a sombra que lhe fugia: foi Wendy, a menina, Anima incipiente, que lha coseu e entregou de volta, a ele, puer eternus, vivendo para sempre na nossa imaginação. 
As Sombras de Inez são algo mais: formas que amadurecem num caminho que não está terminado, mas em que o jogo complexo do Yin e do Yang ocupará um lugar.
   
  



 

1 comment:

Anonymous said...

fico pelas bonitas imagens que as letras são demais :P